Por que David Bowie foi tão necessário para esta galáxia?
Fomos perguntar aos seus principais cúmplices: o produtor Tony Visconti e o fotógrafo Mick Rock
No universo de David Bowie não há respostas, só interpretações. Foi assim desde 10 de fevereiro de 1972, data em que Ziggy Stardust se mostrou pela primeira vez na Terra. Antes, já tinha sido mod e hippie, mas suas seguintes personalidades e sua habilidade para detectar a estética e os sons adequados a cada momento se tornaram mais afiadas, gerando um impacto difícil de igualar. Nenhum outro músico viu sua influência se estender de tal forma a passarelas, salas de cinema, museus, karaokês e até à Estação Espacial Internacional, onde o astronauta Chris Hadfield entoou Space Oddity alguns anos atrás.
Sobre nenhum outro artista pop se pode dizer que se antecipou tanto à fluidez entre gêneros, algo de que tanto se fala nos últimos meses. Bowie, em seus últimos meses, permaneceu em silêncio e preferiu aparecer como um pregador lunático e febril no clipe de apresentação de Blackstar, seu 26º álbum, como se tivesse a intenção de rir da sua imagem de visionário. Já que nunca obteremos respostas da sua boca, as buscamos – ainda antes da sua morte – junto às pessoas que mais o conheceram e mais tempo passaram tentando decifrar o mito.
“David e eu vamos completar 50 anos de amizade”, contou o produtor Tony Visconti semanas atrás. Ninguém trabalhou por mais tempo com Bowie, nem esteve presente em tantas de suas etapas. “A primeira vez que estive cara a cara com ele e vi esses olhos estranhos soube que estava diante de uma estrela”, recorda. Visconti o conheceu antes de Bowie virar Ziggy, e permaneceu ao seu lado em discos como Young Americans, Low e Heroes. Foi a ele que o artista recorreu em 2013 para romper um jejum discográfico de uma década, com The Next Day. Desde então, adotou o papel de seu porta-voz extraoficial. Ele explica por que a relação extrapolou o lado musical. “Bom, ele é muito, muito inteligente. Sempre mantém seus receptores abertos. E é um grande comunicador”, afirmou. “Não se enxerga apenas como um astro do rock, Não limita sua arte a esse contexto. Assim, é capaz de pensar muito além.”
Will Brooker não trocou uma palavra com ele em sua vida, mas passou os últimos meses tentando pensar como Bowie, se vestir como Bowie e experimentar tudo o que Bowie experimentou. Esse professor de estudos culturais da Universidade Kingston, em Londres, decidiu fazer uma imersão total no mundo dele, a tal ponto que poderia parecer a obra de um transtornado. Mas seu discurso demonstra outra coisa. “David Bowie é uma construção fictícia”, explica. “Bowie é uma invenção de David Jones, o indivíduo que desfruta da vida privada dele. Bowie é a figura pública criada por ele. É um personagem, uma performance. Como outros fenômenos culturais fictícios, assumiu diversas formas e se valeu de uma dinâmica complexa com seu contexto social.” Essas mudanças constantes forjaram a ideia de Bowie como um enviado do futuro, potencializada por ele mesmo no filme O Homem que Caiu na Terra (1976), em que ele interpreta um extraterrestre que se infiltra na Terra.
“Ele se antecipou às tendências em várias ocasiões”, argumenta Brooker, “mas tendemos a esquecer outros momentos, talvez até mais frequentes, em que não foi assim. Seu uso do drum’n’bass em Earthling (1997) foi uma tentativa tardia de aderir a uma subcultura, por exemplo”. Independentemente das vezes em que se antecipou (ou não) ao que estava por vir, Bowie sempre soube desempenhar esse papel.
O fotógrafo Mick Rock acompanhou sua transformação em Ziggy Stardust, viajando com ele em 1972 e 1973. Algumas das imagens mais famosas do artista nós devemos ao “fotógrafo dos anos setenta”, que agora reúne muitas delas em um luxuoso livro intitulado Mick Rock. The Rise of David Bowie. “Era fascinante, hipnotizante”, recorda. Desse período aprendeu a importância da imagem na criação de uma estrela. “Ziggy Stardust era uma projeção. Quando o lançou, não era famoso. Tinha seguidores, sim, mas esse disco era sua maneira de dizer: ‘Posso me transformar em uma estrela’. Seus olhos sempre estavam no futuro. Teve um impacto enorme, sobretudo na feminização da atitude masculina. E tinha a capacidade de mudar sempre. Agora é normal ver como os artistas procuram uma atração visual. Não tenho nem ideia de como Nicki Minaj sonha, mas sei muito bem qual é o seu aspecto. David alterou esse patrão.” O próprio Bowie dizia, numa entrevista de 1972: “Sou um colecionador de personalidades”.
Masayoshi Sukita é o único fotógrafo que trabalhou com ele ao longo de 40 anos, sendo testemunha da sua metamorfose. “Para um artista, há muitas maneiras de se expressar”, reflete. “Para ele, sua maneira é adotar outras personalidades.” Para Brooker, “’pós-moderno’ é um termo muito apto para defini-lo. Podemos ver sua influência na moda contemporânea e em astros como Lady Gaga”. Bowie viu o futuro do pop, mas este não tinha forma de canção ou de som, e sim de imagem. Ele descobriu isso, e o resto do mundo o seguiu depois. Em outras ocasiões exerceu o papel de visionário de maneira literal. Em 2002 fez várias previsões sobre a indústria musical ao The New York Times. Certamente passou do ponto ao afirmar que “o copyright não existirá dentro de 10 anos”, mas outras foram mais certeiras. “A música será como a eletricidade e a água corrente”, antecipou. “Os músicos precisam se preparar para fazer turnês, será a única opção que restará.” Ele, obviamente, pôde se dar ao luxo de ignorar o seu próprio conselho. “Quantos shows ele já fez? 10.000? Por que iria querer fazer mais?”, pergunta-se Visconti sobre o fato de Bowie ter se aposentado dos palcos em 2006. “Por que quereria fazer mais?”
Mas ele atrevia a antecipar que Blackstar não seria a última coisa que ouviríamos de Bowie, que fez coincidir o lançamento deste disco com o dia de seu 69º. aniversário, em 8 de janeiro. “Com certeza ele continuará fazendo música e a apresentará de distintas maneiras. Sua peça teatral Lazarus é um exemplo”, opinou, antes da morte do artista, sobre o musical estreado há algumas semanas no off-Broadway. A última encarnação de Bowie, parecia ser a de um senhor maduro que passeia por Manhattan, vê exposições e, quando sente o impulso criativo, liga para o seu amigo Tony para gravar. Will Brooker tem sua própria teoria: “Com a idade, encontrou a segurança, um senso estável de quem ele é. Assim ele pôde criar sem a necessidade de alterar sua imagem”. Talvez esta última fase não tenha sido tão revolucionária como um alienígena pansexual ou o frio duque branco, mas… Que mais se poderia pedir a alguém que retornou tantas vezes do futuro?
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