Por que a reforma que afeta 300.000 alunos em SP virou caso de polícia?
Para especialistas, falta de planejamento do Governo estadual agravou a crise
A mais nova dor de cabeça do governador Geraldo Alckmin não tem relação com as torneiras secas devido à falta de água, tampouco foi provocada por chacinas cometidas na periferia por policiais militares. Esta crise foi gestada quando o Governo decidiu efetuar uma reforma no sistema de educação, que fechará 94 escolas, mas vai mexer com a vida de 300.000 alunos de escolas estaduais de São Paulo. Para especialistas, teve como ingrediente principal a falta de diálogo do Governo com a comunidade escolar.
A tensão explodiu em outubro, quando alunos da rede pública tomaram as ruas para protestar contra o plano de reforma do sistema educacional no Estado – que até então não havia sido explicado claramente para os envolvidos. A insatisfação dos estudantes alcançou outro patamar na terça-feira, quando dezenas deles resolveram ocupar a escola Fernão Dias, no bairro de Pinheiros, zona oeste de São Paulo. “Nós gritamos e ninguém nos ouviu”, disse um dos ocupantes.
O movimento se espalhou para outras unidades, e na quinta-feira já eram seis os centros de ensino tomados pelos alunos. Na sexta-feira, houve outras adesões. A reação do Governo, de pedir na Justiça a reintegração de posse dos terrenos e acionar a polícia militar para sitiar algumas delas – no entorno da Fernão eram mais de 100 PMs e culminou com cenas de repressão com gás de pimenta – jogou mais gasolina em uma situação já inflamada. “É uma questão política, não de polícia!”, cantavam os estudantes que acampavam em frente à escola na noite de quinta-feira, sob o olhar atento da tropa de choque da corporação. Mexer com direitos básicos, como educação, tem um peso grande num país que ainda cobra pela melhoria da qualidade para sair das piores estatísticas do mundo.
No final de outubro, o plano de reforma de Alckmin, que será implementado a partir de 2016, foi detalhado pela Secretaria de Educação. Ele prevê o fechamento de 94 escolas (1,8% do total de rede), que terão seus prédios cedidos para outras finalidades educacionais, como creches e ensino técnico. Além disso, haverá o remanejamento de turmas em 754 unidades, para que haja apenas um ciclo educacional em cada – mais de 300.000 estudantes serão transferidos. Hoje, o ensino é dividido em três ciclos. O primeiro, agrega alunos do 1º ao 5º ano do Fundamental (entre seis e onze anos); o segundo, do 6º ao 9º ano do Fundamental (entre 12 e 14 anos); e o terceiro, alunos entre 15 e 17 anos no Ensino Médio.
A reforma pretende que o número de escolas que hoje recebem alunos dos três ciclos, as chamadas ciclos mistos, diminua. E as instituições que recebem apenas um dos três ciclos, aumentem. Os maiores receios da população são que com o novo plano os estudantes sejam obrigados a migrar para escolas com desempenho inferior à atual, mais distantes, e com salas superlotadas.
Não há comprovação de que a unificação do ciclo é benéfica
A medida do Governo foi anunciada alguns meses após o término de uma das maiores greves de professores do Estado, que durou 82 dias, de março a junho deste ano, e reivindicava melhorias salariais, que não foram atendidas. Tudo soma-se a este caldo de insatisfação, uma vez que muitos professores não sabem se continuarão a dar aulas nas escolas onde estão empregados atualmente. A Associação dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo é contra a reforma, sob a alegação de que professores serão demitidos e haverá uma precarização nas unidades. A entidade convocou uma paralisação contra a medida para o dia 27 de novembro, sob o lema "Nenhuma escola fechada, nenhuma sala superlotada", e em seu site afirmou estar "em estado de greve contra a bagunça na rede de ensino" - o estado de greve é um indicativo de que os professores podem cruzar os braços novamente em breve.
A comunicação oficial para os familiares será neste sábado (14), quando as escolas ficarão abertas para que os diretores e supervisores esclareçam eventuais dúvidas dos pais. A Secretaria Estadual de Educação afirma que a medida foi adotada em um contexto de redução de demanda – o número de alunos caiu de 6 milhões em 1998 para 3,8 milhões atualmente. As razões apontadas são uma queda na natalidade da população e a absorção de boa parte dos alunos pelas redes particular e municipal. Além disso, a pasta informa que “o modelo [de ciclo único] é utilizado em outros países referências em educação”, e que escolas de segmento único do ensino médio “têm um rendimento até 28%s superior às demais”.
Especialistas discordam, e dizem que faltou diálogo por parte do Governo antes de tomar a medida. “A decisão veio de cima para baixo, e agora você vê como a comunidade está reagindo”, afirma Daniel Cara, coordenador da Campanha Nacional pelo Direito à Educação. De acordo com o cientista social, a justificativa para a unificação de ciclo é “muito superficial do ponto de vista pedagógico”, uma vez que “não existe nenhuma conclusão” de que o modelo é mais eficiente. Segundo ele, as melhores escolas são as com maior diversidade: “É importante que um aluno do ensino médio saiba interagir com um aluno mais novo. Isso enriquece o processo educacional”.
Cara é crítico do processo de fechamento – ou cessão de escolas para outro fim, termo adotado pelo Governo -, e aponta o que considera o “caminho ideal” a ser trilhado pelo Brasil, seguindo um modelo adotado nos países desenvolvidos: “Escolas que têm ociosidade [salas vazias e poucas turmas] devem avançar para a educação integral e ensino técnico para o ciclo médio na mesma unidade”. De acordo com o coordenador, “uma medida de gestão boa na área de educação precisa ser producente, facilitar o acesso à formação, e não restringir, que é o que o secretário fez”, diz o coordenador. Ele destaca que existe uma demanda pelo ensino estadual, comprovada por unidades com salas de aula lotadas. “O conjunto da história do país não tem sido de ampliação do direito à educação, e do nosso ponto de vista, é inaceitável o fechamento de escolas”, afirma.
É preciso debater publicamente a reforma para obter consensos mínimos
Das escolas que serão fechadas, 30 apresentaram desempenho superior à média do Estado no Idesp de 2014 - principal indicador de qualidade da educação paulista -, segundo reportagem do jornal o Estado de São Paulo.
João Cardoso Palma Filho, professor da Unesp e integrante do Conselho Estadual de Educação, acredita que faltou diálogo, e que a comunidade escolar “foi pega de surpresa” pelo anúncio da reforma. “Não vou dizer que apenas o diálogo resolveria, mas pelo menos neutralizaria a ação de pais, que saberiam que seus filhos estudariam perto de casa [o Governo afirmou que a distância entre a escola antiga e a nova não superará 1,5km], e que eles ainda teriam escolas”, diz. “No escritório, com uma planilha de Excel no computador, se resolve tudo. ‘Falta combinar com os russos’”, afirma, parafraseando o jogador Mané Garrincha.
Ele também critica a justificativa de que o ciclo único é positiva para o desempenho dos alunos. “Não há comprovação de que a unificação do ciclo é benéfica”. Cardoso diz que o argumento se baseia em alguns bons resultados da medida obtidos após a municipalização de parte do ensino nos anos 90. “Muitas escolas de ciclo único apresentaram bons resultados, mas essa separação não é garantia de bom desempenho da escola”, afirma, lembrando que “a secretaria estadual investiu pesadamente nisso”, mas que em muitos casos “o resultado foi péssimo, principalmente no ensino médio”.
"Sem consenso não há reforma"
“A educação, e sobretudo a mudança em educação, precisa ser preparada”, afirma o professor da Universidade de Brasília e ex-consultor da Unesco para a Educação Célio da Cunha. Segundo ele, resistências às mudanças são parte do processo, uma vez que educação envolve os valores da sociedade. “É preciso debater publicamente a reforma para obter consensos mínimos. Nenhuma reforma na educação no mundo avança hoje sem consenso”, diz.
O professor afirma que existem inúmeros exemplos na história brasileira e mundial de propostas de mudanças educacionais que eram boas, “mas que não foram devidamente apresentadas e discutidas com alunos, professores e pais, acabaram redundando em fracasso”. De acordo com Cunha, para dar certo, “é preciso que a reforma entre no imaginário da sociedade de modo geral”.
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