“Se você quer que ele seja um delinquente, trate-o como um”
'Numa escola de Havana', em cartaz no Brasil, dá pistas de uma nova Cuba Filme trata da relação entre uma professora experiente e um aluno rebelde
Demonizar: o primeiro passo para se deparar com o demônio. Em uma escola do ensino fundamental de Havana, em Cuba, um menino de 11 anos está sempre às portas de uma escola de conduta – a versão cubana de um centro de correção infantil. Chala, filho de uma jovem mulher viciada em drogas e álcool, apronta de tudo: cai na briga durante o recreio, joga cartas durante a aula, dá respostas atrevidas e, num ato que extrapola a tutela escolar, se joga ao mar com um rival para disputar uma corrida a nado e ver quem pode mais. Para tudo, Chala – com o carisma de um contraventor de bom coração – tem justificativa, que pode vir de sua boca ou não. Mesmo assim, todos o tratam como um delinquente, inclusive sua mãe. A exceção é sua professora, a sábia Carmela.
Carmela é o cérebro e Chala é o coração de Numa escola de Havana (Conducta, no título original), o filme que parte da relação entre uma professora experiente e um aluno rebelde para retratar a Cuba de hoje, e está agora em cartaz no Brasil. Dirigido pelo cubano Ernesto Daranas, o longa-metragem é resultado de uma colaboração criativa do cineasta, que debutou no cinema com Los dioses rotos, com estudantes da Faculdad de Cine del Instituto Superior de Arte (ISA). O objetivo era rodar um filme que retratasse as mudanças atravessadas pelo país em tempos de abertura econômica, e, para isso, nada melhor do que ambientar sua história no microcosmo da sociedade que é a escola. Nela, além de razão e sentimento, há o velho e o novo, o bom e o ruim, e, sobretudo, o inesperado.
Chala se revela muito mais do que uma criança-problema, graças à resiliência e à sabedoria de Carmela – em uma relação aluno-professor que escapa da caricatura graças à ótima atuação de ambos atores, o jovem Armando Valdes Freire e a veterana Alina Rodríguez (falecida há dois meses). “Se você quer que ele seja um delinquente, trate-o como um”, ensina a professora que o resgata. Por essa razão, o primeiro dos bons debates suscitados pelo filme é, claro, sobre a educação. Qual é o papel da escola nos dias atuais? Como, ao passo da massificação da tecnologia, não massificar as relações, descaracterizando a saudável interação entre mestre e aprendiz? Afastando-se de Cuba para pensar no Brasil, as respostas a essas perguntas passam por um desânimo tanto com o ensino público e como com o privado no país.
Em uma sessão especial de Numa escola de Havana, dia 25 de setembro, no Caixa Belas Artes, professores de São Paulo deram sua contribuição sobre o tema em um debate que aconteceu após a exibição do filme. Filipe Freitas, que dá aulas de Filosofia na escola Fernão Dias Paes, do ensino médio estadual, vê na profissão um papel que vai muito além do afetivo, com o grande desafio de formar seres humanos que saibam pensar – em si mesmos e no coletivo. “Nenhum aluno é igual ao outro, e alguns precisam de mais atenção. Porém, no dia a dia, a escola tem que fomentar soluções solidárias que fortaleçam o grupo. Não criminalizar os estudantes e nem tratá-los como clientela”, opina o professor de 29 anos que dá aula há cinco. Para ele, que é filho de professores e se formou inteiramente no ensino público, o erro é “transformar o professor numa espécie de herói, porque isso isenta o poder público de fazer a sua parte, que é valorizar a escola e o trabalho de quem leciona”.
Mara de Nápoles concorda. “O protagonismo do professor é não ser protagonista”, na visão da professora do ensino fundamental da Campos Salles – escola paulistana da rede pública municipal que se tornou famosa pelo seu modelo “sem muros” que dividam alunos e educadores da comunidade, em Heliópolis. “Na Campos Salles, não somos professores, mas facilitadores. E os alunos não assistem às aulas: trabalham em conjunto, em salões com cerca de 100 estudantes, ajudando uns aos outros. A meu ver, a Carmela é no filme uma figura inspiradora e sábia, não o típico professor que sabe tudo e sempre tem razão”, opina a profissional que há 18 anos leciona em Heliópolis, depois de ter trabalhado em escolas particulares – onde afirma que enfrentava os mesmos problemas de má conduta de alguns estudantes. Um professor da rede privada que participou da discussão crê que o mau comportamento muitas vezes advém da falta de autonomia dada às crianças: “Elas são muito mais maduras do que a maioria pensa”.
Houve unanimidade em afirmar que a educação no Brasil passa por dificuldades bem diferentes das de Cuba – onde, diga-se de passagem, o filme virou um fenômeno social –, e a primeira delas é a desvalorização do professor – que, nos moldes cubanos, reconhecidos pela ONU como exemplar, é tratado com dignidade. “Em toda minha vida escolar, faltaram professores e também materiais a maior parte do tempo. Mas os professores que ficaram, em sua grande maioria, acreditavam no que estavam fazendo, e a isso devo minha formação”, diz Filipe. No caso de Mara, as falhas do poder público foram justamente dribladas por um grupo de professores, do qual ela fazia parte, que encontrou espaço na Campos Salles para instalar um modelo alternativo, que opera horizontalmente. “Foi a maneira que encontramos de resgatar a relação de confiança que o ensino tradicional deixou de promover”.
Uma nova Cuba
Chala não é o único a ser estigmatizado no premiado Numa escola de Havana. Cuba, pelo lado romântico ou pelo demoníaco, costuma também ser um país idealizado por quem o desconhece. O filme trata de colocar as nuances de uma sociedade que alcançou importantes conquistas, éticas, sobretudo, mas que vive também carências e injustiças.
No ambiente da escola, degradado fisicamente, assim como as moradias dos personagens, as relações humanas também se veem prejudicadas por regras como a que proíbe a presença de um santinho católico no mural da sala de aula ou a que determina que estudantes de outras províncias não podem ser matriculados em Havana. A primeira ignora a liberdade religiosa e de expressão das pessoas, e a segunda, o deslocamento que é a realidade dos cubanos que migram para a capital por motivos variados, inclusive para buscar trabalho.
São temas de uma Cuba contemporânea que trata de reinventar sua personalidade en la caliente, ou seja, enquanto as mudanças acontecem.
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