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As cartas de Mario de Andrade a Anita Malfatti, Carlos Drumond e Portinari

Exposição das cartas trocadas pelo escritor com os principais expoentes das artes do século 20 abre as portas em São Paulo

Mario de Andrade.
Mario de Andrade.ACERVO IEB-USP

Há uma maneira de se aproximar de Mário de Andrade (1893-1945) para conhecê-lo como quem conviveu com ele: debruçar-se sobre suas cartas. O escritor paulistano – também músico e agitador cultural – sofria, como ele mesmo diz, de “gigantismo epistolar”. Escrevia cartas de todos os estilos e tons, sobretudo aos amigos, com quem tricotava com a mesma facilidade que estabelecia as bases do Modernismo brasileiro. Pois, para quem quer ter o gostinho de ser seu amigo, as cartas de Mário acabam de virar tema de uma exposição que abre as portas neste sábado, 19 de setembro, no Centro Cultural dos Correios, em São Paulo – depois de passar pelo Rio de Janeiro e por Brasília e ser vista por 50.000 visitantes.

O valor dessas cartas aumenta à medida em que seus destinatários não eram personagens quaisquer. Mário era uma das vozes e mentes principais de um grupo composto pelos maiores representantes das artes e da cultura no Brasil em sua época. À amiga Tarsila do Amaral, por quem nutria certa paixão, escreveu em novembro de 1923, quando a pintora e outros modernistas passavam uma temporada na França – com a qual Mário não estava muito de acordo:

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“Cuidado! Fortifiquem-se bem de teorias e desculpas e coisas vistas em Paris. Quando vocês aqui chegarem, temos briga, na certa. Desde já, desafio vocês todos juntos, Tarsila, Oswaldo, Sérgio para uma discussão formidável. Vocês foram a Paris como burgueses. Estão épates [chatos]. E se fizeram futuristas! (…) Se vocês tiverem coragem, venham para cá, aceitem meu desafio”.

O desafio em questão era construir um Brasil moderno, com cara de brasileiro. Sobre esse país autêntico e pra frente, pelo qual Mário não se cansava de lutar, ele falou ao poeta Carlos Drummond de Andrade – que tanto o admirou, apesar dos estilos diferentes de ambos.

Carta de Di Cavalcanti a Mario de Andrade.
Carta de Di Cavalcanti a Mario de Andrade.Divulgação

“Carlos, devote-se ao Brasil junto comigo. Apesar de todo o ceticismo, apesar de todo o pessimismo e apesar de todo o século XIX, seja ingênuo, seja bobo, mas acredite que um sacrifício é lindo. (…) Nós temos que dar ao Brasil o que ele não é, e que por isso até agora não viveu, nós temos que dar uma alma ao Brasil e para isso todo o sacrifício é grandioso, é sublime”, disse o escritor em uma carta de novembro de 1924. O discurso, de tão pertinente aos dias de hoje, chega a comover.

Bom conselheiro e crítico que era, Mário de Andrade era procurado pelos amigos para que opinasse sobre a produção artística deles. À pintora e sua grande amiga Anita Malfatti, dirigiu-se em uma carta cujo ano é desconhecido assim:

“Agora são 10 e meia. Apenas me levantei. Mas a primeira coisa que faço é pensar em ti e no teu desenho. Acabo de tornar a olhá-lo. Queres a minha opinião sobre ele, orgulhosinha? Pois fica sabendo que me entusiasmei”.

Era o tipo de interlocução íntima e, ao mesmo tempo, profissional, que o escritor tinha também com o pintor Cândido Portinari. Os dois foram especialmente íntimos no período em que, depois de afastado de seu cargo no departamento de cultura da prefeitura de São Paulo, foi chamado para trabalhar em um cargo menor no Rio de Janeiro, no começo da década de 30. À época, as diferenças entre as paisagens e especialmente entre os climas paulistano e carioca chamavam ainda mais a atenção. Os amigos se corresponderam certo dia, em 1935, e Mário discorreu sobre um fevereiro:

“O Carnaval aqui esteve bem divertido, apesar da frieza paulista. Eu, pelo menos, me diverti à larga e os bailes estiveram colossais, todos dizem. Mas nem assim deixava de imaginar de vez en quando no que estariam fazendo vocês aí do grupinho”.

Mário de Andrade – Cartas do Modernismo, em cartaz até 11 de novembro, traz a correspondência do autor de uma maneira didática, pincelando em diferentes estações de visita os momentos mais marcantes de sua trajetória. Dividida em períodos e feita para ser degustada em camadas, de acordo com o conhecimento de cada um sobre Mário, a mostra traça uma cronologia do Primeiro Modernismo por meio de reproduções de obras, livros e textos. No Segundo Modernismo, trata da amizade de Mário com Portinari mostrando a admiração e o carinho mútuos. Para ampliar a experiência, algumas obras de arte modernistas de Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti e, claro, Portinari, complementam os textos.

O melhor é que não se trata de ficar de pé, lendo cartas extensas e escritas à mão – o que hoje causaria intolerância em muitos. A exposição, com curadoria de Denise Mattar, propõe uma interatividade, meio à moda antiga, em que o visitante pode sentar no chão em meio a reproduções de cartas de papel espalhadas, escutar uma seleção de algumas delas, que foram gravadas em áudio, ou então se debruçar sobre os livros que as editaram. O importante é mergulhar em seu universo e, se possível, ficar amigo do Mário.

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