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ONU pede que militares sejam interrogados sobre massacre de Iguala

Relatório das Nações Unidas critica investigações “tardias e deficientes” do Governo

Jan Martínez Ahrens
Lixão municipal de Cocula, onde jovens foram mortos.
Lixão municipal de Cocula, onde jovens foram mortos.SAÚL RUIZ

Os ecos da tragédia de Iguala chegaram à ONU. O Comitê de Desaparecimentos Forçados das Nações Unidas lançou, em seu último relatório sobre o México, um duro ataque às investigações “tardias e deficientes” feitas pelas autoridades mexicanas depois do desaparecimento de 43 estudantes de magistério, em setembro de 2014. Numa inesperada reviravolta, a ONU pediu uma “revisão geral” das investigações, compatível com a análise de especialistas internacionais que colocam em dúvida as hipóteses oficiais sobre o crime. O texto solicita ainda que esses especialistas sejam autorizados a interrogar militares presentes naquela noite em Iguala, uma iniciativa rejeitada pelo Governo do Enrique Peña Nieto e que é vista como uma afronta ao status intocável dos militares mexicanos.

Mais de 23.000 desaparecidos desde 2006 transformaram o México em enorme vala comum

O México é uma terra povoada de espectros. Mais de 23.000 desaparecidos desde 2006 –a imensa maioria deles supostamente mortos – transformaram o país numa enorme vala comum. E as tentativas de sepultar esses cadáveres não funcionaram. “A impunidade generalizada perdura como um padrão crônico e favorece os desaparecimentos forçados”, afirma a ONU.

Ao longo de 300 páginas, o comitê analisa os trabalhos iniciados e prometidos pelo Estado mexicano desde sua anterior visita ao país, em 2011. O resultado é desolador. Embora observem alguns avanços, os especialistas da ONU afirmam que prevalece a mesma “situação deteriorada” de quatro anos atrás. Não há, no entender deles, um diagnóstico nem uma admissão do problema por parte dos altos escalões. “Essa falta de reconhecimento cabal se evidenciou de maneira crua com o desaparecimento forçado de 43 estudantes normalistas de Iguala em setembro de 2014 e com as investigações tardias e deficientes que se seguiram”, destaca a ONU, antes de entrar de cabeça na acirrada polêmica que envolve esse caso. O relatório foi assinado pelo Grupo Interdisciplinar de Especialistas Independentes (GIEI), ligado à Comissão Internacional de Direitos Humanos.

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Esses especialistas, após seis meses de trabalho, solicitaram não só a abertura de novas linhas de investigação, mantendo o caso em aberto, como também detonaram uma bomba-relógio ao encampar o trabalho de um investigador internacional, o peruano José Torero, que nega a tese de que os corpos dos normalistas foram incinerados no aterro sanitário da localidade de Cocula, como sustenta a Procuradoria Geral da República. Essa conclusão tem efeitos sísmicos. A fogueira de Cocula é o ponto central das confissões dos pistoleiros presos até agora. Mas, se essa queima de cadáveres não aconteceu, as declarações deles estariam integralmente invalidadas, e assim, como uma árvore podre, o núcleo da versão oficial viria a baixo.

Os investigadores da Procuradoria se mantiveram firmes diante do ataque da ONU. Reservadamente – já que uma ordem presidencial exige sigilo em torno desse caso de alta volatilidade emocional –, eles dizem que suas conclusões foram baseadas em 487 relatórios periciais, 386 depoimentos, 114 detenções, 95 grampos telefônicos e inúmeras atividades de busca e apreensão. Além disso, consideram que a conclusão do especialista internacional parte de uma premissa – que seriam necessários mais de 800 quilos de madeira para queimar um só corpo – que foi rejeitada por colegas de mais prestígio e é facilmente refutável.

Diante dessa polêmica, o grupo de trabalho da ONU, sem deixar de aplaudir a política de mão estendida de Peña Nieto, alinhou-se com seus colegas do GIEI e pediu uma “revisão geral” da investigação de Iguala. Neste contexto, o relatório também respalda que os investigadores internacionais possam interrogar o pessoal militar presente naquela noite na cidade, um ponto extremamente sensível para o Governo mexicano e cuja simples menção causa arrepios em generais pouco habituados a prestar contas ao poder civil.

Com essa dupla solicitação, a bola vai agora para o campo de Peña Nieto, num momento altamente delicado. Na próxima semana o massacre completa um ano, e as feridas abertas por aquela tragédia ainda não se fecharam. Os pais das vítimas rejeitam a investigação oficial, e as pesquisas mostram que a maioria da população está cética quanto aos resultados apresentados. Num ambiente de forte erosão, o Governo enfrenta o seu maior inimigo: a desconfiança. E também a constatação de que em Iguala, para muitos mexicanos, ainda é noite.

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