O kirchnerista Scioli vence as primárias na Argentina
Daniel Scioli, candidato de situação, diz que sua vitória foi “contundente” Seu principal rival, Macri, afirma que se consolidou uma alternativa de poder
Daniel Scioli, o candidato da Frente para a Vitória, o partido de Cristina Kirchner, venceu as eleições primárias na Argentina, de voto obrigatório. Scioli se impôs com 37,7% dos votos. No entanto, a chave estava nas diferenças com o segundo lugar, Mauricio Macri, cuja aliança de centro-direita Mudemos obteve 30,8% e, com o terceiro, o partido peronista de oposição, pelo qual concorrem Sergio Massa e José Manuel de la Sota, que somou 20,7%. O escrutínio se complicou ainda mais do que o esperado e ficou para o final a província-chave, Buenos Aires, onde mais de um terço dos argentinos vota e onde Scioli governa. O resultado não parecia nada claro e as coisas ficaram bastante abertas para as eleições de outubro, ainda que Scioli tenha partido como claro favorito.
Todos pareciam ter ganho depois de uma noite de informações cruzadas. O candidato kirchnerista qualificou de “contundente” sua vitória, que dedicou a Néstor e Cristina Kirchner. Nos últimos anos, Scioli se distanciou muito claramente dos Kirchner e em especial da presidenta, que o desprezava por considerá-lo muito à sua direita, mas na hora da verdade os dois se uniram para juntar seus votos e vencer Macri. Agora Scioli fala como se fosse um kirchnerista a vida inteira. Seus correligionários insistem em que ele só faz isso para conseguir o máximo de votos possível e que, quando tiver poder, fará as coisas a sua maneira, como ele costuma dizer.
Enquanto os kirchneristas comemoravam no Luna Park, um lugar mítico da noite portenha no qual já foram realizados grandes shows, disputas históricas de boxe e até o velório de Carlos Gardel, Macri também parecia feliz com a projeção do resultado. “Consolida-se assim uma alternativa em nossa querida Argentina”, afirmou. O prefeito de Buenos Aires tentou angariar votos em toda parte e até disse que tinha “aprendido com o peronismo o valor da justiça social e da igualdade de oportunidades”.
Tudo parecia indicar que Scioli não alcançaria os 40% que desejava para arrasar e marcar as presidenciais
O principal objetivo de Mauricio Macri era que Scioli não passasse de 40% e o Mudemos ficasse acima dos 30%. Aí se entra na zona que garante que haverá segundo turno em outubro, uma questão chave, porque todos os votos antikirchneristas poderiam se unir em torno de Macri e causar uma reviravolta nas eleições. A Constituição argentina diz que se um candidato passa de 45% ou fica com 40% e consegue mais de 10 pontos sobre o segundo, é eleito no primeiro turno. O grande temor da oposição é justamente que Scioli atinja esse objetivo em outubro.
Há muitos anos, pelo menos desde 2003, as eleições argentinas são definidas antes mesmo de começarem. O kirchnerismo arrasou em 2007 e em 2011, praticamente sem rival. Mas desta vez tudo está muito mais equilibrado. Por isso, os 32 milhões de argentinos chamados às urnas nas primárias, que não são decisivas mas dão o tom do pleito de outubro, votaram em um ambiente de grande tensão entre os partidos, que mobilizaram dezenas de milhares de pessoas para controlar as eleições. O opositor PRO de Macri denunciou desde o início que em vários colégios foram roubadas as cédulas para impedir que houvesse a votação. As pesquisas indicavam que o peronismo de Scioli se imporia, mas pequenas diferenças de alguns pontos para cima ou para baixo poderiam deixar tudo aberto para as eleições de outubro.
Os 32.037.323 argentinos com direito a voto são obrigados por lei a ir às urnas, o que, somado a um sistema de votação arcaico, com cédulas enormes e complexas –de até 1,20 metros– provocou enormes filas em todos os colégios. Votar, sobretudo nos arredores de Buenos Aires, inundados depois de dias de uma chuva torrencial, foi uma verdadeira aventura. O PRO denunciou logo que as cédulas estavam sendo roubadas em muitas escolas. “Começou o roubo de cédulas, alguns entram magros e saem gordos do quarto escuro”, afirmou Macri, depois de votar em uma escola do bairro de Palermo, apesar de depois ter contemporizado dizendo serem “casos isolados”.
O PRO de Macri, o partido que tem mais problemas nos subúrbios de Buenos Aires, o coração do peronismo, diz que tem até 100.000 fiscais em todo o país
Referia-se a uma prática frequente na região metropolitana de Buenos Aires. As cédulas ficam dentro do quarto escuro e alguns dos que entram levam escondidas as papeletas dos outros partidos, de forma que quando outros cidadãos chegam não encontram a que gostariam de votar. Outros dirigentes do PRO, como Fernando Niembro e Patricia Bullrich, também denunciaram roubos de cédulas. Para evitá-los, todos os partidos disponibilizaram dezenas de milhares de fiscais —interventores. O PRO de Macri, o que mais tem problemas na região metropolitana de Buenos Aires, coração do peronismo, afirma que tem até 100.000 em todo o território.
E, no entanto, são muito pouco ao lado do aparato do peronismo. Na escola da rua Descartes, em Grand Bourg, coração da região metropolitana, a única fiscal do PRO ia e vinha controlando também outros colégios. José Luis González, da Frente para a Vitória, o partido de Scioli e dos Kirchner, afirma que ali não há nenhum problema, mas ironiza: “Quem não consegue fiscalizar uma eleição não pode governar um país”. Ou seja, se Macri não consegue controlar as eleições em cada colégio, não pode pretender chegar ao poder.
É uma ideia parecida com o que disse Massa, o peronista dissidente que controla exatamente estas zonas da região metropolitana. “Vamos acabar com a história de que há fraude na Argentina. Todos os partidos têm a responsabilidade de cuidar de seus votos. É preciso cuidar do voto de nossas forças e do direito das pessoas”, afirmou. Ou seja, todos negam a fraude, mas insistem que o PRO não deve se queixar e sim colocar mais fiscais.
Enquanto isso, a presidenta, Cristina Kirchner, votou em Río Gallegos, na província patagônica de Santa Cruz, e denunciou que tinha chegado às eleições depois de uma “campanha suja” devido às denúncias de suposto tráfico de efedrina contra seu chefe de Gabinete, Aníbal Fernández, candidato a governador de Buenos Aires.
O kirchnerismo arrasou em 2007 e em 2011, praticamente sem rival
Em outra escola das Malvinas Argentinas, um município controlado pelos partidários de Massa, os fiscais do PRO afirmavam que ali não havia roubo de cédulas. “Aqui não houve problemas”, afirmava Juan. “Em José C. Paz [outro município] houve. Só havia cédulas de Scioli e foi preciso esperar meia hora para que trouxessem as demais”, explicava Marcelo, outro fiscal desse partido. O PRO tem dificuldades para encontrar fiscais e neste caso não são militantes do partido, mas de um sindicato, o dos caminhoneiros, que tem um candidato local que fechou com o PRO. Por isso eles são fiscais do partido de Macri, mas para presidente votam em Scioli, porque são peronistas.
Os fiscais entram nas cabines a cada 10 ou 15 votantes para verificar se as papeletas continuam lá. Às vezes são roubadas, em outras só são escondidas. Foi recomendado aos fiscais do PRO que levassem canetas de várias cores para assinar os envelopes com os quais se vota: é uma forma de dificultar ainda mais a fraude, na qual o envelope é a chave. Por isso muitos pedem a implantação em todo o país do sistema de votação eletrônica que funcionou muito bem nas eleições locais de Buenos Aires, em julho. Mas, no momento, o peronismo o rejeitou, e continua com esse sistema que permite microfraudes e provoca uma enorme mobilização e custos para evitá-las.
Para impedir o risco de ficar sem cédulas devido aos roubos, foram impressas quatro vezes mais do que as necessárias. Carlos Figueroa, fiscal dos partidários de Massa, atua como chefe local às portas da escola e afirma que há até 150 fiscais que vão e vêm em uma escola onde votam 4.000 pessoas. As ruas enlameadas do entorno complicam o acesso, mas a escola está cheia e todo mundo espera longas filas para votar. Além das primárias presidenciais, nas quais se podia escolher entre 15 combinações diferentes, havia primárias para as listas de 24 senadores e 130 deputados. A Argentina decide seu futuro e, apesar das múltiplas denúncias de pequenos problemas, todos os candidatos admitem que não há um problema de fraude generalizado no país. Desde a volta da democracia, em 1983, o ganhador nunca foi questionado por este motivo.
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