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A novela da Lava Jato, capítulo delação: trair ou salvar a pátria?

Cerne de investigação, instrumento provoca debate jurídico e moral e vira tema de curso

O advogado mineiro Antonio Carlos de Almeida Castro, conhecido como Kakay, em 2012.
O advogado mineiro Antonio Carlos de Almeida Castro, conhecido como Kakay, em 2012.Gabo Morales

Um advogado dos altos escalões do poder, criminalista famoso por seus honorários na casa dos milhões, mas camuflado entre mortais com calça jeans, tênis e camiseta da moda (tudo preto), caminha pela entrada da Casa do Saber, centro de cursos rápidos em São Paulo onde a elite da cidade se atualiza. É o criminalista Antônio Carlos de Almeida, o Kakay, quem recebe os olhares do público. Uniformizados com gravata e terno ou blazer e salto alto, esperam para ouvi-lo sobre um tema quente: delação premiada.

"Quando me convidaram para vir, eu pensei ‘vou para São Paulo falar para aquele monte de coxinha lá, e o [ex-ministro José] Dirceu acabou de ser preso... Vou ser morto”, ironizou, conquistando risadas do plateiaPara esse mineiro de Patos de Minas que advoga há 30 anos nas cúpulas de Brasília não há dúvida nem titubeio sobre a delação premiada. Ele é um crítico ferrenho do recurso jurídico do momento, um dos motores do megaescândalo da Lava Jato: "Sou do tempo em que ser cagueta era uma coisa errada”.

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O conceito é velho, mas a roupagem é nova. Até pouco tempo, delatar só significava entregar, caguetar, trair. Porém, graças às inúmeras fases da Operação Lava Jato, chamadas carinhosamente de capítulos por aqueles que seguem a novela política que domina o país, um delator deixou de ser um dedo-duro, dedo de cimento armado, dedo de seta, alcagueta, cagueta, cabueta, x-nove... Num giro  que provoca um acalorado debate jurídico e moral, o termo assumiu protagonismo inédito. É das declarações de duas dezenas de delatores que partem as mais contundentes acusações que levaram políticos, executivos e poderosos empresários para a cadeia. Em seu conjunto, estariam os delatores ajudando a salvar a pátria da corrupção? O que é, afinal, a delação premiada? Como se usa? Foi invenção da Lava Jato? Habita os domínios da ética?

Kakay escolhe as armas para a exposição, na qual pretende demolir o instrumento e pregar sobre os riscos de abraçá-lo. Não se trata de um observador distante. Ele testa ali os argumentos que provavelmente usará para defender seus clientes —os senadores Ciro Nogueira (PP-PI) e Romero Jucá (PMDB-PR) e a ex-governadora Roseana Sarney (PMDB/MA)—, todos citados no escândalo da Lava Jato e e alvo das delações já aceitas pela Justiça.

“Eu não advogo para quem delata", disse Kakay, que desistiu da defesa de Alberto Yousseff no processo do Petrolão porque o doleiro resolveu contar o que sabia em acordo de delação. "Até porque eu sabia que ele ia delatar umas 50 pessoas que são meus clientes”, ironiza de novo, na sala de aula apinhada com 70 pagantes, a maioria advogados e estudantes de Direito, que ouviu com atenção as explicações e opiniões de Kakay, considerado um dos maiores especialistas em Direito Penal do país.

Na Lava Jato, as delações premiadas são pactuadas entre o Ministério Público, a Polícia Federal e o delator em questão, representado por um advogado, e posteriormente homologadas pelo juiz do caso, Sérgio Moro, que se inspirou na operação italiana Mani Pulite (Mãos Limpas), que ele descreve como “uma das mais impressionantes cruzadas judiciárias contra a corrupção política e administrativa” em um artigo de 2004 sobre o tema.

Há obrigações inerentes no tipo de acordo, que só foi regulamentada completamente como parte do sistema jurídico brasileiro em 2013. Seus defensores dizem que tem potencial para revolucionar a apuração de crimes do colarinho branco. Argumentam que o recurso consagrado em países como EUA e Japão não faz outra coisa senão colocar criminosos confessos a serviço da reparação dos danos causados. Além de ser voluntária, a delação tem que ser efetiva. Em outras palavras, que ofereça vantagens ao Estado, que em contrapartida oferecerá ao delator uma redução de pena, entre outras regalias, de acordo com o valor de seu testemunho para a investigação em curso.

Kakay, advogado de primeiro plano no julgamento do Mensalão, contesta os pressupostos. Critica a atual “espetacularização midiática do processo criminal”, uma ressalva feita também pelos críticos da Mãos Limpas italiana. A seu ver, a delação não está sendo feita de maneira voluntária e anda assumindo um ímpeto justiceiro e ocupando o lugar de uma adequada investigação – quando deveria ser apenas o seu disparador. “Estamos passando por cima de conquistas da Justiça, como a presunção de inocência e a garantia de defesa. As pessoas estão sendo presas para sofrer pressão e delatar. O procurador diz pro cara, numa cela apertada com uma fossa no lugar da privada e sem água no fim de semana: ‘Quer dormir em casa?’. E ele assina um acordo. Isso não é voluntário”, expôs Kakay, em alusão aos empreiteiros presos por Moro, em Curitiba. “O cara liga a TV e vê um rico sendo preso”, e sente um certo “regozijo”. “Estamos vivendo em um país monotemático” e “ Sérgio Moro é uma pessoa justiceira que caiu nas graças da sociedade brasileira.”

O criminalista, talvez desapontando os novos caminhos que pavimentam os ideais de cruzada contra a corrupção no Brasil, questiona ainda que esses depoimentos premiados permaneçam sigilosos e que os advogados não tenham acesso a eles – apesar de serem em parte vazados para jornalistas. “Não tem defesa. Tem no máximo simulacro de defesa”, diz ele, ultrajado. Ao contrário do passado, em que advogados eram as fontes, Kakay hoje conta com a imprensa para “saber o que está acontecendo”.

Mas o que Kakay chama de espetáculo midiático outros chamam de novos tempos no Judiciário, onde advogados habilidosos têm menos vantagem num mundo agitado pelos procuradores que fazem aberta campanha para atrair corações e mentes para suas causas. "Apostar que juízes, procuradores e delegados agem com arbítrio, ferem direitos fundamentais dos réus, sem clara e fundamentada evidência, é protesto que se dissolve no ar", escreveu na Folha um dos maiores expoentes desta corrente, o professor de direito da FGV-Rio, Joaquim Falcão, para quem a Lava Jato ajuda a enterrar a era das teses jurídicas. "Antes, você discutia muito teses jurídicas. Ou seja, a tese em abstrato tinha mais importância do que o fato. E a tese reinterpretava os fatos. Hoje, isso é mais difícil, por causa da publicidade do processo e por causa da maturidade crescente da opinião pública", disse ele ao EL PAÍS em março.

A advogada Beatriz Catta Preta, responsável por defender nove delatores da Operação Lava Jato, era  uma forte adepta do recurso, até abrir mão de seus clientes e da carreira como um todo – após revelar que estava sendo pressionada por aliados do presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, a fazê-lo. Ela afirmou que “teme sofrer algum tipo de violência”. “Sou ameaçada de forma velada, insistentemente, por pessoas que se utilizam da mídia para tanto, bem como pelas declarações de políticos membros da CPI”, disse ao Estado de S.Paulo. Kakay é duro com Catta Preta. Aos alunos da Casa do Saber diz que sua decisão “não honra a democracia”: “Não acho que o advogado pode se acovardar diante da opinião pública”.

O sujo falando do mal lavado

O curso provou que assunto, de fato, está na moda. Tanto é assim, que um dia depois de Kakay, a unidade paulistana abriu de novo suas portas ao tema, desta vez sob o prisma da ética, para que o psicanalista e mestre em Filosofia pela USP Pedro de Santi discorresse sobre Uma psicanálise da delação. É que a delação premiada ainda desperta dúvidas e sentimentos desencontrados. Entra no debate a veracidade do conteúdo delatado e a própria moral do delator, para muitos um sem-moral, já que, para começar, está onde está porque agiu contra a lei. “Ele é um transgressor ao quadrado. De início, rompeu com a lei de seu ambiente, estabelecendo outra ordem, de interesse pessoal, com parceiros no crime. Tendo sido preso, entrega seus parceiros para obter diminuição de sua punição. A palavra do delator é suspeita em si. Ele já demonstrou seu desapego a ela desde o início”, argumenta De Santi.

Quem está de acordo com ele são aqueles que viveram na pele as perseguições e torturas da ditadura brasileira, em que a delação, não premiada mas forçada, era a arma dos militares e o inferno sobretudo daqueles que participaram da luta armada. Era um outro completo contexto político, em que um grupo político estava alijado da legalidade por um governo de exceção e violador de direitos. Ao se pronunciar sobre delação premiada da Lava Jato onde um empreiteiro acusava o PT e sua campanha, a presidenta Dilma Rousseff reviveu pesadelos de sua militância e foi criticada por misturar os mundos: “Eu não respeito delator, até porque eu estive presa na ditadura e sei o que é. Tentaram me transformar em uma delatora. A ditadura fazia isso com as pessoas presas”, disse, ainda que ela mesma tenha sancionado a lei da delação. O mesmo sentimento de rechaço apareceu quando o ex-guerrilheiro e ex-ministro José Dirceu, acusado de ser um dos possíveis orquestradores de todo o Petrolão, se referiu ao tema: "É mais fácil matarem Dirceu do que ele fazer uma delação premiada", disse seu advogado, Roberto Podval.

O peso da experiência traumática da ditadura carrega ainda mais o legado cultural de rejeição à delação, que vai de Judas ao traidor de Tiradentes, Joaquim Silvério dos Reis. Mas para a advogada Ana Paula Martinez, escalada para defender a delação premiada na Casa do Saber em setembro, os críticos da delação têm de demonstrar que benefícios sua exclusão traria. "Quem se entrega ao mundo do crime não pode esperar de seus comparsas a mesma confiança que embasa relações lícitas. Programas de delação se aproveitam exatamente dessa instabilidade", escreveu Martinez na Folha de S. Paulo. "Não cometer crimes é o que a ética exige de nós." “Se as leis forem justas e democráticas, não há como condenar moralmente a delação; é condenável nesse caso o silêncio”, disse o próprio Moro.

“Se os tribunais superiores fossem fazer um debate técnico, acho que todos esses depoimentos seriam anulados. Acho que o melhor para o país seria manter as garantias individuais”, rebate Kakay, concordando que o processo de erradicar a corrupção seria mais lento, porém republicano e certeiro. "Assim (com a Lava Jato) o país se encontra com nova Justiça e advocacia penal no Estado democrático de Direito", defende Joaquim Falcão.  Aos alunos, Kakay disse acreditar que esses “processos espetaculares” não mudam o Judiciário, o país ou o mundo. O que ficará, segundo ele, se esse cenário continuar, é um profundo “obscurantismo”.

Eis um debate longo e ainda inconclusivo, como foi o da tese do Domínio de Fato, empregada no mensalão, para justificar a primeira prisão de Dirceu. Longe do mundo das teses jurídicas, no entanto, o Brasil só espera, ansiosamente, superar de vez o quadro permissivo que trouxe esses delatores à cena.

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