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José de Souza Martins | autor do livro 'Linchamentos - A justiça popular no Brasil'

“Brasil tem um linchamento por dia, não é nada excepcional”

Homem morto por vizinhos no Maranhão escancara a rotina da violência no Brasil

María Martín
Cleidenilson da Silva morreu linchado no Maranhão.
Cleidenilson da Silva morreu linchado no Maranhão.Biné Morais (Agência O Globo )

A cena de mais um linchamento pinçou de novo estômagos e consciências em boa parte do Brasil. Nesta segunda-feira, Cleidenilson da Silva, de 29 anos, morreu de joelhos. Ele foi espancado até a morte por um grupo de moradores após um assalto frustrado a um bar no Jardim São Cristóvão, um bairro pobre de São Luís, no Maranhão. Um adolescente que ia com ele foi resgatado e preso pela polícia. Amarrado pelo pescoço e pelo abdômen com uma corda a um poste, o corpo desnudo de Cleidenilson foi exposto e fotografado frente a uma multidão curiosa, vizinhos dos que o mataram. Mãos e dedos impressos em sangue tingiram a cena, mas o episódio é mais um no Estado, mais um no Brasil. “Brasil tem um linchamento por dia, não é nada excepcional nesta rotina de violência, este caso não tem nada de diferente do resto, ao não ser essa imagem que choca”, explica o sociólogo José de Souza Martins, alguém que não se surpreende mais diante a brutalidade. 

Souza Martins investiga há 20 anos os linchamentos no Brasil. O primeiro episódio do qual se tem registro aconteceu em 1585, em Salvador, quando um índio cristianizado que se achava Papa foi linchado até a morte por algo que, provavelmente, ofendeu os fiéis. O último (que conhecemos) foi Cleidenilson da Silva. 430 anos separam um do outro. A pesquisa de De Souza, baseada em 2.028 casos de linchamento, materializou-se no livro Linchamentos - A justiça popular no Brasil (Contexto, 2015). De Souza fala para EL PAÍS sobre o sentimento de que a melhor justiça é feita com as próprias mãos e que torna Brasil campeão da crueldade. "Nos últimos 60 anos, um milhão de brasileiros participaram de linchamentos", afirma no livro. Enquanto a entrevista telefônica acontecia, o diário maranhense O Estado trocava a manchete de seu site: “População tenta linchar assaltante em São Luís dois dias depois de barbárie que chocou o país”.

Pergunta. O que você pensou ao ver o novo linchamento acontecido no Maranhão?

Resposta. É mais um linchamento. Brasil tem uma media de um linchamento por dia, não é nada excepcional nesta rotina de violência, este caso não tem nada diferente do resto ao não ser a imagem, que choca outras pessoas. A atenção publica é atraída mais pelas imagens, que pelo fato de ter virado rotina.

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P. Que efeito causa a divulgação de casos de linchamentos?

R. Não existe uma avaliação do efeito que produz assistir a essas imagens, mas é de se presumir que o efeito é de reproduzir essa prática, porque o modelo se repete. Trata-se do mesmo tipo de espetáculo, o poste... Muitos elementos são reproduzidos, a divulgação acaba estimulando a repetição das ocorrências.

P. Que significado tem, no cenário cruel de um linchamento, atar a vítima a um poste?

R. Não tem nenhum. Os linchamentos se desenvolvem em formatos muito variados, amarrar à vítima num portão ou num poste é porque esse elemento era parte do cenário onde se motivou o linchamento. É algo causal, mas justamente é o poste que motiva o interessa a audiência, mas a população não sabe o que é pelourinho.

P. O senhor constatou que o preconceito racial não motiva os linchamentos no Brasil, mas aumenta o índice de crueldade. Por que com os negros os linchamentos são mais brutais? O que se vê de diferente no linchamentos de um negro?

R. O que eu constatei é que a cor da pele não é a primeira motivação para linchar alguém. Nos primeiros dez minutos o padrão se repete e não há nenhuma diferença. Independentemente de a vítima ser branca ou negra, você vê pedradas, pauladas, pontapés. A diferença se manifesta no decorrer do ato, de forma muito mais sutil do modo como o racismo é concebido no Brasil. Ele se torna mais violento. Se o linchado for negro, a probabilidade de aparecerem outros componentes mais violentos como mutilação, furar olhos ou queimar viva a vítima, aumenta.

P. Há precedentes de punição dos autores de linchamentos?

R. Há casos de abertura de processo, de julgamento, mas é muito difícil identificar os autores. No caso da mulher do Guarujá [linchada em maio de 2014 após um bulo nas redes se espalhar], eram 1.000 pessoas. Identificaram meia dúzia e abriram processo contra elas. Em geral, a polícia abre processos por violência ou assassinato, tenta identificar pessoas, vai pegar dois ou três, vai abrir processo, mas se forem a julgamento os advogados podem invocar o Código Penal brasileiro e pedir a atenuação da pena por crime coletivo e, provavelmente, não vai acontecer nada.

P. Brasil é o país onde mais se lincha? O que fazer para reduzir estes episódios?

R. Os linchamentos se repetem em muitos países, mas a frequência no Brasil é muito maior. Nós temos uma media de um linchamento por dia. Tudo tende a se resolver com o linchamento. Nos EUA, o país que mais linchou no mundo, foi a resposta da sociedade civil que parou a prática. No Brasil o que está acontecendo é que as pessoas acabam ligando a polícia. Em 90% dos casos de linchamento no país, a polícia salvou a vítima.

P. Como explica que a grande maioria dos comentários das notícias sobre linchamentos sejam favoráveis à justiça popular aplicada com violência?

R. As redes sociais não são representativas de nada. O que conta nos casos dos linchamento é o fato de uma pessoa ligar para a polícia, não precisam ser dez pessoas, só uma, e isso acontece em um número muito alto de ocasiões.

P. O que explica que estes episódios continuem acontecendo no Brasil?

R. Pelo mesmo motivo que se repetem no Moçambique, no México, na Argentina, na Guatemala... As instituições não funcionam. A Justiça é morosa, é cara, é complicada, é lenta. Você não vai discutir a legalidade do linchamento em um grupo que viu uma criança estuprada por um adulto. Ninguém vai esperar um processo porque já está convencida de quem cometeu o crime. A instituição judiciária no Brasil sempre foi um luxo para quem pode pagar um advogado, para quem conhece as regras. Nós temos duas sociedades, uma que segue as regras do estabelecido e outra que não as segue porque não concorda com elas.

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