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Verdades e mentiras das Festas de São Firmino na Espanha

Festa, tradição, “marketing”. O que é real no festival popular que ocorre em Pamplona?

Cenas tremendas de emoção e violência acontecem em Pamplona.
Cenas tremendas de emoção e violência acontecem em Pamplona.Josu Santesteban (AP)

Não acredite no que contam. A maior parte não é verdade. Truques publicitários, lendas, tradições que parecem ser antigas para atrair turistas e ficar com seu dinheiro. Como falta sol e praia, tivemos que inventar alguma coisa para trazer pessoas para Pamplona. Para começar, inventamos São Firmino. Não há certeza histórica sobre sua existência. Até o século XII ninguém o conhecia aqui, mas juramos de pé junto que em Amiens, onde ele é adorado como bispo e mártir, dizem que ele veio de Pamplona. A Igreja colocou sua festa em 25 de setembro, a data do seu martírio no século III, mas desde 1591 ela é comemorada em 7 de julho para aproveitar o breve verão de Pamplona e o fato de que, desde a Idade Média nessa data, há feiras e touros.

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Os ventos do progresso conspiram contra as touradas, “festa de sangue para um povo rude e fanático”, escreveu Pío Baroja, que viveu parte de sua infância entre nós, mas aqui por interesses espúrios quase ninguém questiona. Nem mesmo os abertzales (nacionalistas), que acabam de eleger um dos seus como prefeito e que vai presidir a corrida de amanhã, dia do padroeiro.

Touros e toureiros próprios sempre foram poucos, mas trazemos de fora, da Andaluzia, de Salamanca e de Madri, e fazemos com que atuem para visitantes, enquanto nós comemos. Há mais de um século que os touros não são conduzidos a pé, são embarcados em trem ou caminhão, mas aqui continuamos empenhados em colocar uma rua estreita até as arenas para que entrem correndo. Não é por tradição já que correr na frente dos touros nunca foi um teste de iniciação para os jovens de Navarra como alguns pensam ingenuamente: correm muito mais pessoas de fora que daqui, mas como íamos sair na televisão de todo o mundo se não fosse pelas corridas de touros...

Corredores em Pamplona.
Corredores em Pamplona.Daniel Ochoa de Olza (AP)

Desconfie de nossa aparente hospitalidade. Nós, de Pamplona, somos sérios, no bom e no mau sentido da palavra, nobres e rudes montanheses que não convivemos bem com estrangeiros. Cada 6 de julho, com o Chupinazo, nos transformamos. Recebemos pessoas de todo o mundo e fazemos com que se sintam em casa, mostramos uma simpatia irresistível, fingimos que somos cosmopolitas embora continuemos a levantar pedras, selamos amizades eternas no balcão de um bar ou ao redor de um leitão assado. Puro marketing. Em 15 de julho, voltamos a ser os mesmos.

Não tente seguir a mítica rota – falsa como Judas – de Hemingway. Veio apenas nove vezes, quando era vivo nunca prestamos muita atenção nele e só adotamos quando pareceu bom negócio. Na Casa Marceliano agora há repartições municipais, fechadas durante as festas, e seu famoso prato ajoarriero desapareceu. O restaurante Las Pocholas se transformou em uma loja de chocolates. O hotel Quintana foi fechado e confiscado em 1936 (não, Hemingway nunca passou a festa nesse outro hotel que aparece nos guias turísticos, onde conservam seu quarto supostamente como quando o Prêmio Nobel NÃO se hospedava nele). O balcão do café Iruña onde existe uma efígie de bronze do escritor nem sequer existia na época. E não acredite na história de Ava Gardner, ela nunca esteve em Pamplona. O filme E agora Brilha o Sol foi filmado no México por questões econômicas, não por ter sido proibido pelo franquismo. Todas essas lendas glamourosas foram criadas – com muito sucesso comercial – para atrair os turistas. Ou são inventadas pelos próprios turistas. James Michener, em seu romance The Drifters (Os andarilhos), coloca os protagonistas no início da festa de 1969 cumprindo com o “importante ritual dos últimos anos”: amarrar um lenço ao redor do pescoço da estátua de Hemingway. O monumento foi inaugurado em... 1968.

Não se vista de branco e coloque um lenço vermelho pensando que é nossa roupa tradicional, herança de remotos ancestrais. Nós nos fantasiamos assim faz apenas uns 40 anos, desde que começou a forte indústria do turismo, assim como no filme ¡Bienvenido, Mister Marshall! (Bem-vindo, Senhor Marshall!) se vestiam os flamencos. A roupa branca é comprada em supermercados e vem da China ou de Bangladesh. Exceto os danzaris ou os txistularis não usamos boina (Peter Viertel, roteirista de Agora Brilha o Sol, que conhecia a festa tentou convencer Henry King, sem sucesso, que os protagonistas não deveriam usá-lo).

Planos para todos os gostos

Balcões. Os balcões nas ruas do percurso custam entre 30 e 80 euros por pessoa, café da manhã incluído.

Baile da Alpargata. Toda manhã no Nuevo Casino. Gente que virou a noite, famílias e até celebridades como Dennis Rodman.

Touros. Mais de 20.000 pessoas por dia. Tauromaquia e loucura.

Shows. Medina Azahara, Celtas Cortos, Alejo Stivel The Wailers, Nancys Rubias, MClan...

Não venha atraído pelo mito de que as Festas de São Firmino são uma bagunça, uma orgia, um desvario em uma Pamplona cidade sem lei onde vale tudo. O caos é de faz de conta e é muito bem organizado. Acaba de ser realizado o primeiro Curso Universitário de Direito Sanferminero. Os veículos de coleta de lixo passam regularmente, o guincho leva os carros mal estacionados, há serviços municipais de crianças, de objetos perdidos e de desintoxicação etílica. Os atos festivos começam com pontualidade prussiana (no restante do ano praticamos a mais relaxada pontualidade ibérica). Os toques matinais não são para despertar a tropa, mas para reuni-la e organizá-la depois de toda a noite de marcha.

Se você não se importa com isso e vem assim mesmo, está arriscado a passar nove dias e nove noites de festa, beber e comer muito além do que supunha que seu sistema digestivo podia suportar, cantar canções que acreditava não conhecer e entrar em danças que acreditava não saber dançar, topar com desconhecidos que de repente são seus melhores amigos, falar com eles em línguas estranhas que não sabia que falava, encontrar legiões de antitaurinos nas arquibancadas da Plaza de Toros, de ateus na Procissão de São Firmino e de abstêmios bebendo em todos os bares.

Miguel Izu é jornalista e escritor navarro. É autor do romance ‘El Asesinato de Caravinagre’, um thriller ambientado nas Festas de São Firmino.

Uma festa popular em branco e vermelho

X3L-1979697 - © - Melba
X3L-1979697 - © - Melba
Javier Doria

ORIGEM. A origem está na celebração religiosa do padroeiro de Navarra, mas os pamplonenses mudaram a data da comemoração religiosa do 10 de outubro original para o 7 de julho, coincidindo com as feiras de gado que a cidade sediava com o final da colheita. Foi em 1591. Mas as feiras de julho com touros são documentadas desde o século XII.

ENCIERROS. O Arquivo Real de Navarra documenta em 1385 a primeira tourada organizada pelo rei Carlos III. junto a ela, a primeira 'entrada' de touros, antecedente do encierro (corrida de touros) atual. Foi criado devido à necessidade de levar os touros dos campos dos arredores até os currais da praça. O percurso atual é o mesmo desde 1852.

CELEBRIDADES. O Sol Também se Levanta é o romance de Hemingway que pôs na agenda mundial uma festividade até então restrita ao recatado norte da Espanha do início do século XX. O Nobel foi um assíduo. Seguindo seu caminho chegaram depois Orson Welles, Arthur Miller e sua mulher, Inge Morath, e, nos últimos anos, o jogador da NBA, Dennis Rodman.

O 'GUIRI'. Os visitantes vindos dos Estados Unidos, Nova Zelândia e Austrália são os estrangeiros mais numerosos e os primeiros a chegar. Fanáticos por sangria em temperaturas altas, vêm toda tarde dos campings nos subúrbios, para onde voltam depois da corrida. A cada edição, a empresa de design Kukusumuxu premia um deles com o troféu 'Guiri (estrangeiro) do ano'.

CHUPINAZO. Hoje a praça do Ayuntamiento de Pamplona será puro fogo. O Chupinazo (queima de fogos) nasceu na praça do Castillo e tomou caráter de ritual em 1931. O ato passou ao balcão da casa consistorial pela mão do franquismo. A chegada da democracia instaurou o costume de os grupos municipais alternarem de maior a menor.

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