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Rainha da Inglaterra oficializa referendo sobre a permanência na UE

O discurso de abertura do Parlamento inclui o anúncio de maior espionagem online

A rainha da Inglaterra e o duque de Edimburgo.Foto: reuters_live | Vídeo: REUTERS LIVE / Getty
Pablo Guimón

Sentada em seu trono na Câmara dos Lordes, com as mais de 3.000 joias da Coroa Imperial do Estado sobre a cabeça e envolta em toda a pompa que cerca este evento de um dos corpos legislativos mais antigos do mundo, a rainha Elizabeth II leu na manhã desta quarta-feira o discurso contendo as prioridades legislativas do primeiro ano do novo Governo de David Cameron. O mapa do caminho, resumido em 1.008 palavras, do primeiro Executivo inteiramente conservador a governar o Reino Unido em quase 20 anos.

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Quase na metade do discurso veio o anúncio, não menos importante, da consulta que muito provavelmente vai marcar os dois primeiros anos do novo Parlamento. “Será introduzida antes do final de 2017 uma legislação para possibilitar um referendo sobre a permanência na União Europeia”, leu a rainha.

O Governo apresentaria o projeto de lei ao Parlamento nesta quinta-feira, antes de Cameron embarcar em uma viagem-relâmpago de dois dias por cinco capitais europeias, que podem acabar sendo reduzidas para quatro. A primeira escala do primeiro-ministro seria em Copenhague, onde ele tinha previsto reunir-se com sua colega dinamarquesa, Helle Thorning-Schmidt. Mas a visita foi cancelada após o anúncio de Thorning-Schmidt de que haverá eleições antecipadas em seu país no próximo 18 de junho.

O restante da viagem, que levará David Cameron a Haia, Paris, Varsóvia e Berlim, continua em pé. A intenção do premiê é reunir-se com todos os líderes europeus para que ninguém seja pego de surpresa com seus planos de renegociar os termos da relação entre o Reino Unido e a UE.

David Cameron con a líder trabalhista Harriet Harman e, no segundo plano, George Osborne, o ministro das Finanças.
David Cameron con a líder trabalhista Harriet Harman e, no segundo plano, George Osborne, o ministro das Finanças.Stefan Rousseau (AP)

A grande surpresa do discurso, apesar de já ter sido adiantada nas horas anteriores, foi a decisão de adiar a controversa revogação da Human Rights Act, uma legislação introduzida pelos trabalhistas em 1998 que transfere a Convenção Europeia dos Direitos Humanos para a legislação britânica. Os conservadores pretendem revogar a legislação e substituí-la por uma carta de direitos britânica que “rompa o laço formal entre os tribunais britânicos e o Tribunal Europeu de Direitos Humanos”.

Os liberais democratas, sócios dos conservadores no Governo anterior, impediram os tories de seguir adiante com essa medida, que obrigaria os cidadãos a recorrer diretamente a Estrasburgo para denunciar violações da Convenção. No final o Governo não incluiu a medida em seu discurso da rainha, limitando-se a anunciar “propostas” para uma carta britânica de direitos. Ou seja, o Governo exclui por enquanto a polêmica legislação em si, talvez por receio de não conseguir levá-la adiante com sua frágil maioria de 12 deputados.

"O Reino Unido deve permanecer como membro da UE?"

"O Reino Unido deve permanecer como membro da União Europeia?". Esta é a pergunta que os britânicos deverão responder, com um "sim" ou "não", no referendo que será celebrado em 2017. O Governo de David Cameron aceitou a sugestão da Comissão Eleitoral, organismo que regula as eleições e plebiscitos. A entidade considerou que a proposta preferida pelo Partido Conservador —"Você pensa que o Reino Unido deveria ser membro da União Europeia"— era mais confusa, e podia fazer com que alguns votantes pensassem que o país não é atualmente um membro da UE.

Desta maneira, os partidários do status quo farão campanha pelo "sim", enquanto os defensores de deixar a UE lutarão pelo "não". É o contrário do que aconteceu no referendo pela independência da Escócia, celebrado no ano passado, onde os partidários do status quo (permanecer no Reino Unido) faziam campanha pelo "não".

O Projeto de Lei para o referendo começa nesta quinta-feira sua tramitação no Parlamento, que estabelecerá o calendário da votação. Nesta manhã, o ministro de Relações Exteriores, Philip Hammond, avisou que ainda "não foi descartada" a possibilidade de realizar o referendo no ano que vem, mas que "o importante é realizá-lo bem, e não rápido".

Poderão votar os britânicos maiores de 18 anos, os cidadãos irlandeses e da Commonwealth residentes do Reino Unido, além dos membros da Câmara dos Lordes e cidadãos da Commonwealth residentes em Gibraltar, que não podem votar nas eleições gerais. Não poderão votar os britânicos que estejam vivendo há mais de 15 anos no exterior. Tampouco os cidadãos da UE residentes no Reino Unido, que sim puderam votar no referendo de independência da Escócia no ano passado. Nem, como pediam os trabalhistas e nacionalistas escoceses, os britânicos de 16 e 17 anos.

A realização do referendo já está livre de obstáculos internos, depois de que os trabalhistas, que se opunham a ele antes e durante a campanha eleitoral, finalmente anunciaram neste fim de semana que votarão a favor de sua celebração.

Cameron se comprometeu em seu programa eleitoral a renegociar com o resto dos Estados membros a relação do Reino Unido com a UE e, uma vez alcançado o acordo, submeter a referendo em seu país a permanência na organização com essas novas condições.

O primeiro ministro não especificou uma lista de mudanças que pretende obter, mas de seus diferentes discursos e artigos de imprensa se pode deduzir que pedirá: impedir que os imigrantes europeus desempregados no Reino Unido tenham benefícios sociais e obrigar os que estejam trabalhando a esperar quatro anos antes de poder solicitá-los; reconhecer que os parlamentos nacionais possuem poderes para vetar legislações europeias; assegurar que os membros que não pertencem a zona do euro, como é o caso do Reino Unido, estejam protegidos diante de eventuais alterações do mercado comum por parte dos membros da zona do euro; e o direito do Reino Unido de se desvincular do principio, presente em todos os tratados, de "uma união cada vez mais estreita entre os povos europeus".

A segunda surpresa foi o anúncio da “modernização” das leis de vigilância das comunicações digitais, outorgando à polícia e aos serviços secretos ainda mais poderes que os previstos. Estes não vão incluir apenas, como se previa, o poder de rastrear as atividades dos cidadãos na Internet e nas redes sociais: também será permitida a interceptação maciça do conteúdo dessas comunicações. A ampliação das medidas com relação ao previsto no programa talvez se deva à inesperada maioria absoluta que liberta Cameron da obrigação de pactuar com os liberais democratas, seus ex-sócios no Governo, que se opuseram repetidas vezes à medida durante o Governo anterior.

Entre as medidas anunciadas na área de Interior também figura a proibição de substâncias psicoativas até agora legais, drogas sintéticas que imitam os efeitos de outras drogas tradicionais. Ficará na história o momento em que a rainha idosa, sentada em seu trono na Câmara dos Lordes, pronunciou as palavras “nova geração de drogas sintéticas” em seu 62º discurso de abertura do Parlamento.

Entre as 26 medidas anunciadas pela rainha, há três blocos legislativos que pretendem aprofundar a descentralização da Administração britânica. Por um lado, o Governo vai apresentar ao Parlamento “uma legislação para assegurar um acordo constitucional duradouro e forte” que conceda mais poderes à Escócia, País de Gales e Irlanda do Norte. Também as grandes cidades, começando por Manchester, terão mais autonomia, desde que decidam incorporar a figura de um prefeito eleito. Por último, a rainha anunciou a também esperada mudança no funcionamento do Parlamento para assegurar que as decisões que afetam a Inglaterra só possam ser tomadas com a concordância da maioria dos deputados que representam a Inglaterra. É uma mudança de importância enorme, levando em conta que os nacionalistas escoceses, com 56 deputados, hoje formam o terceiro maior bloco no Parlamento.

No plano econômico, que ocupou a primeira parte do discurso, o Governo vai continuar com seu “plano de longo prazo para proporcionar estabilidade econômica e segurança” ao país. “Controlar as finanças públicas e reduzir o déficit” continuará a ser a prioridade. Serão tomadas medidas para reforçar a produtividade. E será cumprida a promessa, feita para pressionar os trabalhistas na campanha, de proibir por lei qualquer aumento dos impostos nos próximos cinco anos.

As medidas anunciadas também incluem um ataque aos sindicatos. Serão colocados mais obstáculos às greves no setor público, e foi introduzida uma mudança no financiamento, definindo que as cotas dos filiados dos sindicatos não devem ser descontadas automaticamente de sua remuneração, mas que os filiados devam tomar a decisão ativa de pagá-las. A onda expansiva da medida vai afetar o Partido Trabalhista, em pleno processo de redefinição e eleição de um novo líder: seus principais financiados são precisamente os sindicatos.

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