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História

2.000 anos de história da América do Sul escritos no gelo

Análise de partículas de uma geleira mostra o apogeu e a queda das cidades pré-incaicas, o Império Inca, o período colonial espanhol e a chegada da gasolina com chumbo

Miguel Ángel Criado
Um cano de gelo de 138 metros extraído do glaciar Illimani (Bolívia) permitiu estudar o chumbo liberado na obtenção de prata durante séculos.
Um cano de gelo de 138 metros extraído do glaciar Illimani (Bolívia) permitiu estudar o chumbo liberado na obtenção de prata durante séculos.Paul Scherrer Institute/Mahir Dzambegovic

Boa parte da história da América do Sul está escrita no gelo. A análise de uma geleira milenar do altiplano boliviano mostra uma correlação entre a presença de chumbo na água gelada e o apogeu e queda das civilizações pré-incaicas e do próprio Império Inca, bem como a chegada dos espanhóis ao continente. Esse material dá pistas da febre da prata que afetou todos esses povos.

Situado a quase 6.500 metros de altura, o Nevado Illimani, perto de La Paz, domina todo o altiplano boliviano. Nessa altitude, recebe precipitações tanto de águas procedentes do distante Atlântico como do Pacífico. Águas que, em seu caminho, absorvem o pó em suspensão das zonas pelas quais passam. Em 1999, uma expedição científica franco-suíça extraiu dois tubos de quase 139 metros de gelo acumulado na geleira durante milênios. Foi cortado em segmentos de 70 centímetros, e cada bloco é como uma porção congelada do tempo.

Agora, uma equipe também suíça analisou a presença de distintas partículas em um dos tubos. Usando a técnica chamada de espectrometria de massas, foi possível medir com grande exatidão a presença relativa de elementos químicos, detectando até mesmo as diferentes variações (isótopos) de um mesmo elemento. Seu alvo principal era o chumbo. Esse material altamente tóxico é um metal pesado encontrado em pequenas quantidades no ar em suspensão. Se aparece em maior proporção, isso significa que a mão do homem está por trás.

"As amostras de gelo são grandes arquivos para estudar a história do clima, as emissões de gases do efeito estufa, incêndios florestais, erupções vulcânicas e a emissão de um número infinito de contaminantes do ar”, diz a pesquisadora Anja Eichler, do Instituto Paul Scherrer e coautora do estudo. Além do mais, com a técnica usada seria possível diferenciar entre o chumbo de origem natural presente no pó atmosférico e o antropogênico e, dentro desse, o provocado pela metalurgia da prata ou o procedente da combustão dos motores a gasolina.

Os cientistas usaram um espectômetro de massas para medir a presença de chumbo no gelo

Partindo de um nível reduzido e mais ou menos estável de chumbo no gelo de quase 2.000 anos, os climatologistas assumiram a função de historiadores. Viram que ao longo da história ocorreram três grandes picos de acumulação desse metal. Assim, comprovaram como ao redor do ano 450 apareciam os primeiros registros de origem antropogênica do chumbo e a proporção se mantinha elevada durante uns 500 anos, até o ano 950.

Durante esse período se deu o aparecimento e o apogeu de duas civilizações pré-incaicas. De um lado, no altiplano boliviano se desenvolveu a civilização liderada pela cidade de Tiahuanaco, a cerca de 100 quilômetros da geleira Illimani. Mais para leste, na parte ocidental do que hoje é o Peru, apareceu a cidade de Huari, a cerca de 700 quilômetros do Nevado. Apesar da distância, a passagem de ambas civilizações pela história ficou no gelo.

Como os impérios posteriores, esses povos desejavam a prata, que era extraída das minas na forma de um mineral combinado com outros metais, como o chumbo e o cobre. Os tiahuanacos o fundiam e deixavam oxidar em um processo chamado copelação. A maior parte do chumbo se evaporava, deixando a prata isolada. É esse chumbo que aparece preso ao gelo.

O gelo foi extraído do Nevado Illimani, uma geleira situada a 6438 metros de altura, que domina o altiplano boliviano.
O gelo foi extraído do Nevado Illimani, uma geleira situada a 6438 metros de altura, que domina o altiplano boliviano.Patrick Ginot

No entanto, tal como foi publicado na revista Science Advance, os níveis desse metal voltam a reduzir-se em meados do século X, data em que tanto a cultura tiahuanaco como a huari começam definhar. Os historiadores levantaram várias teorias sobre a queda dessas civilizações pré-incaicas. Poderia ter ocorrido um enfrentamento entre elas, revoltas em seu interior, uma longa seca... ou uma combinação de tudo isso.

"Encontramos uma poluição por chumbo antropogênico provocada pela metalurgia da prata durante o período tiahuanaco. A queda dos níveis de chumbo depois dessa data tem conexão com a forte alta da concentração de pó – de cério, por exemplo. Essas concentrações de pó entre os anos 1000 e 1400 são as maiores em registro nos últimos 2000 anos, o que indica que foi uma época muito seca”, explica Eichler. Assim, o gelo confirmaria a ideia de que uma seca de séculos possa ter influído no destino de Tiahuanaco e Huari.

Incas, espanhóis e Cerro Rico de Potosí

Foi preciso esperar o Império Inca para que os níveis de chumbo no gelo do Illimani voltassem a subir. Os incas usavam um sistema de fornos (huayra) para fundir o mineral, aproveitando o vento do altiplano para facilitar a fundição. Com a chegada dos espanhóis, as coisas não mudaram no princípio. Nem sequer quando os conquistadores descobriram o Cerro Rico de Potosí, que se tornaria a maior mina de prata do mundo. Além de usar os povos nativos para explorar a mina, os europeus copiaram o sistema de huayras.

No entanto, a partir de 1570 os níveis de chumbo no gelo voltaram a cair até quantidades quase naturais. O que se passou? Bem, os espanhóis começaram a usar mercúrio para separar a prata dos demais metais, e esse é um processo a frio, o que fez com que a emissão de chumbo na atmosfera se reduzisse ao mínimo. Em Potosí chegaram a ser usadas 45.000 toneladas de mercúrio. Apenas o aumento no preço desse material ou a abertura de outras minas na área explicariam alguns picos pontuais de acumulação de chumbo nos séculos seguintes.

Desde os anos 60 do século passado o chumbo da gasolina domina o de origem metalúrgica

É no final do século XIX que o gelo volta a ficar cheio de chumbo. Os registros coincidem com o processo de industrialização que toda a zona andina atravessa. Mas, na Bolívia em particular, tem início o período de apogeu da extração de estanho, metal do qual o país se tornaria o principal exportador e, ainda hoje, um dos três maiores produtores mundiais. Como acontece com a prata, o estanho, obtido de minerais como a cassiterita, é encontrado misturado a outros metais, incluindo o chumbo.

Mas o maior aumento de concentração do chumbo no Nevado Illimani, umas três vezes mais que em épocas passadas, se dá a partir dos anos 60 do século passado. É a era da exploração do cobre, mas, sobretudo, a do automóvel e sua gasolina com chumbo. É interessante comprovar como esses altos níveis flutuam em função da proibição paulatina desse combustível em favor de gasolinas sem chumbo em distintos países.

O Brasil foi o primeiro país da região a apostar em gasolinas limpas, com uma transição concluída em 1991. E isso se observa na progressiva redução do chumbo e outros materiais de combustão no registro do gelo. Mas, como foi em 1999 que arrancaram o pedaço da geleira, não há dados da última década, quando Peru, Chile e Bolívia também deixaram de usar a gasolina com chumbo.

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