Pink Floyd e eu
Era verão e eu não sabia que em três anos minha vida mudaria para sempre
*Para Helena Ruffato
Talvez por temperamento, nunca tive ídolos. Para idolatrar alguém ou algo torna-se necessário vestir os óculos da paixão, que nos veda a luz e impede o raciocínio. No plano individual, a paixão deseja a morte do objeto venerado, o “alguém”, que nos satisfaz apenas como projeção de uma ideia que construímos a respeito dele. No plano coletivo, agarramo-nos a “algo” que nos fortalece a sensação de pertencimento (clube de futebol, cantores populares, líderes religiosos, partidos políticos) e pregamos a aniquilação do outro diferente de nós. A idolatria age por exclusão, por isso mantenho-me distanciado de discursos arrebatados, que são, ao fim e ao cabo, fundamentalistas.
Isso não significa, claro, que não tenho admirações, encantamentos, fascínios. Zico e Tostão permanecem para mim como exemplos de jogadores de futebol, por seu comportamento dentro e fora do campo. Torço para o Flamengo (tenho uma pequena coleção de camisas retrô, que inclui a utilizada no ano do meu nascimento) e releio sempre Machado de Assis, Balzac e Tchekov. Adoro meus gatos, Federico Felino e Sky, que não são deuses egípcios reencarnados, mas unhas afiadas que destroem os móveis do apartamento. Guardo algumas lembranças agradáveis da infância em Cataguases, mas reconheço minha cidade-natal pobre, feia, provinciana. E gosto imenso de Pink Floyd, cuja música me acompanha desde os 14 anos de idade.
Era verão e eu não sabia que em três anos minha vida mudaria para sempre. Naquele momento, habitava o corpo franzino de um garoto triste que perdia o sono assustado com o coaxar das estrelas no céu imenso, apavorado com a possibilidade de o mundo sucumbir numa hecatombe nuclear – pela manhã, eu me olhava no espelho e sentia uma genuína vontade de morrer... Montava na bicicleta freio contra-pedal e atravessava a cidade carregando trouxas de roupa lavada e passada para a clientela da minha mãe. Invisível, entrava pela porta lateral das casas e entrevia universos tão longínquos quanto aqueles que imaginava à noite deitado na minha cama, a janela emoldurando o firmamento.
A kombi estacionou no meio-fio e o rapaz, bigode e cabelos negros ondulados na altura dos ombros, subiu as escadas. Filho do dono de uma padaria, Z. ajudava a família distribuindo pães para os armazéns, restaurantes, bares e botequins. Simpático, usava roupas extravagantes e arrastava fama de maconheiro, categoria na qual a polícia classificava desde consumidores e traficantes até pessoas indesejadas de maneira geral (rebeldes, agitadores, indisciplinados, revoltosos), para marcá-las como contestadores da ordem, da moral, dos bons costumes. Z. entregou a trouxa de roupa suja para minha mãe e voltou-se para mim, que ouvia, melancólico, temas de faroeste-espaguete de Ennio Morricone, um dos seis ou sete elepês que meu irmão comprara com o toca-discos Philips no Natal (alguns dos outros: Ray Coniff, Músicas inesquecíveis - Volume 1, Contos dos Bosques de Viena de Strauss, O melhor da música italiana, Burt Bacharach...).
Z. falou, Vou trazer um negócio pra você. Apareceu à tarde, me repassou um disco que estampava uma vaca na capa (o que me conquistou de imediato a estima, pois remetia às minhas férias na roça), alertando: Só tome cuidado pra não arranhar... Custei a tomar coragem para assentar aquela bolacha preta no prato da eletrola, mas quando o fiz foi um alumbramento. Os sons de metais ritmados pela bateria misturavam-se a relinchos de cavalos e barulho de motocicletas, coroados por violinos angelicais, batidas eletrônicas e solos de guitarra, guindando-me a um voo sobre minha casa tão modesta. Lá de cima enxerguei minha mãe, lenço abraçando os cabelos castanhos, as mãos azuis de água de anil; enxerguei meu pai, terno e gravata, arrastando os sapatos em círculos infindos; enxerguei meu irmão apascentando o pomar, que breve seria sufocado pelo matagal; enxerguei minha irmã a chulear as horas, ansiando enredos de contos de fadas. Eu começava a me despedir de todos... Eu queria salvá-los, mas não podia... “Se eu fosse um trem, estaria atrasado”...
Na semana seguinte, Z. pegou o disco, feliz por saber que havia me maravilhado. No entanto, suas visitas espaçaram-se e em menos de seis meses ele sumiu de vez. Descobrimos então que seus pais, preocupados com as más companhias, haviam resolvido enviá-lo para um colégio interno no interior de São Paulo, onde contavam com parentes. Anos depois, ele retornou à cidade, convertendo-se num agiota famoso na região. Hoje, estão todos mortos, minha mãe, meu pai, meu irmão. Parte de mim imergiu com eles, parte permanece, como uma canção de Pink Floyd – cicatriz intangível na espessura da alma.
Luiz Ruffato é escritor e jornalista.
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