“Quer nos ajudar a torturar alguém?”
Nas prisões franquistas de Madri, conhecidos das vítimas eram convidados a participar dos “exercícios” de tortura
Esta é uma história real sobre o inferno da tortura que um dos protagonistas me contou e sobre a qual nunca escrevi porque me repugnou tanto que preferia que ela morresse em meu esquecimento. Não é uma história de tortura no Brasil, mas em minha pátria, a Espanha, e se passa, concretamente, nas prisões policiais da Praça do Sol em Madri, durante a ditadura militar franquista que durou 40 longos anos.
Decidi contá-la hoje movido por todo esse tsunami de notícias que o relatório redigido pela Comissão da Verdade sobre o inferno da tortura no Brasil está trazendo à tona. Cada caso revelado parece mais vergonhoso e cruel que o anterior, como se a violência humana ao agredir o próximo não tivesse limites.
O Brasil está vivendo durante esses dias uma catarse com a publicação dos nomes dos responsáveis e atores de tanta barbárie. E nem sequer os torturadores que ainda estão vivos poderão ser julgados e castigados porque a Lei de Anistia assim determina, com o objetivo de facilitar, se diz, a volta da democracia e para não ter de castigar também os grupos violentos de extrema esquerda.
O caso que apresento hoje nesta coluna foi contado a mim por um amigo que, após anos, ainda ficava com a voz trêmula ao recordá-lo. Não se trata de alguma tortura nova e refinada, já que nesse modelo de barbárie toda a fantasia humana parece já ter se esgotado.
O que aconteceu com o meu amigo prova que se no aspecto físico já é impossível inventar novos tipos de torturas, esse horror pode ser infinitamente aperfeiçoado em seus aspectos psicológicos.
Entregavam a Franco, junto com o café, depois da comida, a lista dos anti-franquistas que deveriam ser executados no dia seguinte
Se aos corpos dos torturados, em todos os tempos, em todos os lugares e de todas as ideologias – direitas e esquerdas – foram aplicados todos os sofrimentos e humilhações imagináveis, nas prisões de Madri, os torturadores conseguiram se superar em sua imaginação ao unir, às vezes, a tortura do corpo à do espírito.
O refinamento de acrescentar um adicional de crueldade à dor física chegou ao cúmulo quando, ao saber que o torturado tinha tido algum amigo íntimo, com o qual, por uma alguma circunstância da vida, havia rompido sua amizade, ou feito alguma maldade para essa pessoa, a buscavam e ofereciam a ela a possibilidade de participar diretamente dos intitulados “exercícios” de tortura.
Desse modo, o antigo amigo da vítima era chamado para ser um carrasco anônimo na escuridão da cela. O único limite que se impunha era o de não acabar com a vida do torturado. Mas um médico presente era quem se encarregava disso.
Meu amigo foi um desses convidados. Ofereceram a ele a possibilidade de participar ativamente, naquela manhã, dos atos de tortura que ia sofrer um antigo amigo seu com o qual havia rompido há tempos após uma briga.
“Assim você pode se vingar dele o quanto quiser”, disseram, e acrescentaram: “Pode torturá-lo como quiser sem que ninguém saiba e poderá fazer com que ele sofra ainda mais vendo que é você quem o tortura”. Era o cúmulo do sadismo.
Entregavam a Franco, junto com o café, depois da comida, a lista dos anti-franquistas que deveriam ser executados no dia seguinte. Ele pegava a folha de papel em suas mãos e desenhava uma flor ao redor de cada nome. Era sua romântica sentença de morte.
Nos locais de tortura, como a antessala de fuzilamento, a fantasia de fazer sangrar até a alma das vítimas não tinha limites, como mostra a história do meu amigo.
“Tortura nunca mais”, diz um cartaz no Brasil. Esse é um gesto e um desejo de alta tensão democrática. Que o tomemos como nosso para nos sentirmos menos cúmplices e menos envergonhados, já que os torturadores não foram nem são monstros ou alienígenas. Têm mãe, irmãos e amigos como nós. Vivem como pessoas normais. Às vezes, tem orgulhoso de seu ofício e do quanto o cumprem bem.
E esse é, talvez, o maior horror de todas as trágicas torturas realizadas ao longo da História, o fato de que o carrasco se apresenta como um de nós.
Não dá calafrios pensar que todos poderíamos ser potenciais torturadores?