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A França resiste às reformas

Socialistas críticos, sindicatos e o Senado dificultam a aprovação de um plano de ajuste histórico

Carlos Yárnoz
Protesto na estátua 'O triunfo da República' em Paris.
Protesto na estátua 'O triunfo da República' em Paris.JEAN MARC PRÉVOST (CITIZENSIDE)

O Governo francês pisa fundo no acelerador nestes dias para levar adiante na Assembleia Nacional o histórico pacote de reformas com o qual prevê colocar em ação o Pacto de Responsabilidade lançado em janeiro pelo presidente François Hollande. Trata-se da primeira e polêmica tentativa de fazer frente a um quinquênio de declínio econômico e social na França. Mas, a divisão interna entre os socialistas, as ameaças dos sindicatos, os protestos nas ruas e o pulso do Senado pairam sobre o primeiro-ministro, Manuel Valls, que já advertiu que não continuará à frente de um Governo que é impedido de avançar.

A segunda economia da zona do euro é hoje a que apresenta alguns dos dados mais preocupantes na União Europeia. Enquanto os países mais afetados pela crise da dívida, entre eles a Espanha, fizeram reformas e começaram a registrar os primeiros resultados positivos, a França acumula números negativos trimestre após trimestre. O desemprego ronda os 11%, o dobro da taxa na Alemanha, e já são mais de cinco milhões de pessoas sem trabalho. A dívida continua a subir e está a ponto de superar os dois trilhões de euros, cerca de seis trilhões de reais, (93,6% do PIB) e o FMI acaba de anunciar que o crescimento este ano será de apenas 0,7%, três décimos a menos do que o esperado pelo Governo.

“Quero fazer com que a França saia deste bloqueio”, declarou Valls ao jornal Les Echos na última quarta-feira, “e mais rápido”, acrescentou na quinta-feira. O bloqueio já dura tempo demais. “Há 10 anos, todos os parâmetros da economia francesa se deterioram quase continuamente”, garantem em seu livro Changer de Modèle, publicado em abril deste ano, o pesquisador Élie Cohen e os professores Philippe Aghion e Gilber Cette. “Apesar da urgência, a França ainda não se reestruturou, não controlou seus gastos públicos [acima de 56% do PIB], nem reformou o mercado de trabalho e o de bens e serviços de forma significativa”, o que reflete “a impotência dos políticos que renunciaram à ação reformadora”.

Os rebeldes repreendem Valls por assumir o discurso sócio-liberal

É no terreno político, e precisamente em suas próprias filas, onde Valls encontra as principais resistências. Um grupo de 41 deputados socialistas apresentaram, estes dias, na Assembleia Nacional emendas para os dois principais projetos de lei que contêm as reformas concretas do Pacto de Responsabilidade lançado por Hollande um ano e meio depois de sua vitória nas eleições de 2012.

Após a forte oposição com Valls, os “rebeldes” se reuniram na última terça-feira para votar a favor do primeiro projeto, que prevê uma redução fiscal para os salários mais baixos e cortes de cerca de quatro bilhões de euros (12 bilhões de reais) nos orçamentos ministeriais. O grupo crítico, encabeçado, principalmente, por deputados próximos à ex-ministra Martine Aubry, já advertiu que não apoiará, na próxima semana, o segundo projeto de lei, de porte muito maior, que prevê para as empresas vantagens em cotações sociais fiscais de mais de 30 bilhões de euros (90 bilhões de reais) em três anos, enquanto os salários dos funcionários e pensionistas são mantidos congelados em valores superiores a 1.200 euros mensais.

O desequilíbrio entre as vantagens obtidas pelas empresas e pelos trabalhadores, assim como o escasso apoio ao consumo dos lares, são os principais pontos esgrimidos pelos “rebeldes”. Valls os contesta: “Reduzir os custos das empresas é apoiá-las para enfrentar uma competição mundial feroz”.

O deputado Philip Cordery, designado pelo partido para responder a perguntas deste jornal, sustenta, por telefone, que o Governo não deve precisar mudar suas prioridades “após cada eleição ou pesquisa”, e que, ainda que os respeite e entenda as reservas ideológicas, entre os “rebeldes” há políticos muito diversos, incluindo alguns que buscam “garantir sua reeleição”. Para Cordery, existe “um forte corporativismo” na França contra as reformas, e também uma contradição: “Os franceses acreditam que as reformas são necessárias, mas quando são propostas, os problemas começam”.

A resposta interna dos socialistas se fortaleceu mais esta semana, depois que Valls anunciou que dará mais vantagens aos empresários, como a simplificação da norma laboral e o corte de privilégios para que pessoas com trabalhos pesados possam se aposentar.

“O discurso sócio-liberal foi assumido”, lamentou de imediato Christian Paul, um dos críticos. Desta vez, inclusive figuras conhecidas do partido aderiram a ele, como o primeiro-secretário, Jean-Christophe Cambadélis —“fico perplexo”— e o primeiro-ministro anterior, Jean-Marc Ayrault. “Não se conseguirá nada sem um compromisso mínimo”, declarou ao jornal Le Monde.

Uma inédita aliança entre comunistas e o UMP freia a mudança regional

Esse compromisso é o que Valls busca na Grande Conferência Social convocada por ele para segunda e terça-feira desta semana. “Sei das tensões que podem existir”, mas “temos que ser exigentes com nós mesmos, porque os franceses exigem isso”, disse por meio de uma carta a sindicatos e patrões.

Foram os agentes sociais que criaram, nos últimos dias, o segundo nível de tensões. Oito empregadores ameaçaram, há uma semana, boicotar a conferência social se não forem aceitas, entre outras, as concessões anunciadas por Valls.

Mas, este anúncio originou outra ameaça de boicote ao diálogo social: a de alguns sindicatos, todos unidos para criticar Valls por ceder, de novo, diante dos empresários. “Basta que o empresariado espirre para que o Governo lhe ofereça uma caixa de lenços”, ressaltou à emissora France Intern, na última quinta-feira, o secretário-geral da Força Operária, Jean-Claude Mailly.

Outra frente abre caminho nas ruas nestas semanas: os protestos, greves e manifestações dos trabalhadores ferroviários, das companhias navais estatais, dos controladores aéreos e de outros aleatórios que resolveram participar do espetáculo.

Por último, o Senado também dificulta a reforma territorial, que prevê a redução das atuais 23 regiões francesas para 14. Em uma aliança inédita, os senadores do conservador UMP, os comunistas e os radicais de esquerda solicitaram um relatório prévio sobre o impacto dessa reforma e, depois, aprovaram o pedido de um referendo. Tudo, para atrasar o debate.

Apenas a Frente Nacional, a grande beneficiada nas últimas eleições europeias, que foi homologada como organização política em uso, está em condições de tirar vantagem. Assim pensa Valls, que em um discurso perante a cúpula de seu partido no mês passado disse: “A crise econômica e social alimenta outra mais profunda, a crise de identidade. A França corre perigo de se desfazer. A direita está aniquilada, a esquerda, desorientada, e a única mensagem clara é a da extrema direita”. Diante de cenário semelhante, Valls teme que a esquerda francesa possa, inclusive, “desaparecer”. “Sim, a esquerda pode morrer”, disse.

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