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A gigante russa do gás se volta para a China sem reduzir hegemonia na Europa

A Gazprom, o monopólio exportador estatal, prepara-se para uma disputa com a UE

Pilar Bonet
Participantes do Congresso Mundial de Petróleo, em Moscou.
Participantes do Congresso Mundial de Petróleo, em Moscou.ANDREY RUDAKOV (BLOOMBERG)

A Gazprom, o gigantesco consórcio controlado pelo Estado que monopoliza a exportação de gás da Rússia, prepara-se para uma época de turbulências com a União Europeia, seu principal cliente internacional. A situação na Ucrânia e os possíveis efeitos das sanções pela anexação da Crimeia causaram tensão nas relações entre Moscou e Bruxelas e aceleraram o desenvolvimento de alternativas à “interdependência”, que em outro tempo foi considerada um fator-chave para a estabilidade energética na Europa.

A Rússia apresenta o grande contrato de exportação de gás para a China, assinado em maio pela Gazprom, como uma virada simbólica da Europa para a Ásia e o Pacífico. Mas o projeto de 400 bilhões de dólares (880 bilhões de reais) para fornecer 38 bilhões de metros cúbicos de gás anuais durante 30 anos significa mais uma diversificação da política energética de Moscou do que uma alternativa aos mercados europeus, onde a Gazprom quer conservar a liderança também no futuro.

Entre os temas europeus que preocupam a Gazprom estão a passagem do gás pela Ucrânia no próximo inverno e o futuro da Corrente do Sul, o projeto de gasoduto pelo fundo do mar Negro para abastecer a Europa meridional e central, incluindo a Itália. O consórcio está disposto a assegurar o fornecimento de gás para a Europa – apesar dos riscos da passagem pela Ucrânia – e também a inaugurar a Corrente do Sul no prazo fixado, em dezembro de 2015, afirmou Alexei Miller, o diretor-executivo de Gazprom, na sexta-feira, depois da assembleia anual de acionistas.

O megacontrato com Pequim significa uma diversificação após a crise ucraniana

Nos dois casos pode haver problemas. Os riscos da passagem pela Ucrânia podem afetar o fornecimento para a Europa, como ocorreu em 2009 e em 2006. Em 16 de junho, a Gazprom cortou o abastecimento de gás para a Ucrânia até que esse país pague os 4,5 bilhões dólares (9,9 bilhões de reais) que lhe deve, segundo o consórcio, por 11,5 bilhões de metros cúbicos de gás. Enquanto isso, a Gazprom não “tem nada a discutir” com Kiev, afirmou Miller. A partir de agora, a Ucrânia só receberá gás russo se pagar antecipadamente suas faturas.

Diante disso, os ucranianos poderiam ficar tentados a obter combustível para seu próprio consumo a partir do gás que circula por seu território em trânsito para a Europa. No momento, não há indícios de que isso ocorra, assinalou Miller, mas o desvio não autorizado “é bem possível” no outono, quando o consumo de gás aumentar e Kiev tiver de acumular reservas. “A Ucrânia não está bombeando gás suficiente em seus depósitos subterrâneos e o problema pode piorar nos próximos meses”, assinalou o alto executivo. “É preciso preparar-se para o pior e não podemos permitir que se interrompa a passagem do gás”, acrescentou. O questionamento dos contratos de trânsito pela Ucrânia seria “uma notícia muito ruim” e “um golpe direto para a confiabilidade do trânsito do gás da Rússia para a Europa”, assinalou.

A Gazprom, que no passado quis formar um consórcio com a Alemanha e a Ucrânia para modernizar o sistema de gasodutos desse países, já não está interessada nesse projeto. “O trem já partiu e isso não aconteceu”, disse Miller.

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A gigante do gás observa atentamente os chamados esquemas de “fornecimento invertido” para levar gás de origem russa à Ucrânia desde outros países europeus e poderia “limitar o fornecimento” às empresas participantes, advertiu Miller. O “fornecimento invertido”, com o qual Kiev tenta compensar o déficit de gás russo a partir de países como Eslováquia, Hungria e Polônia, não está proibido na UE. A Corrente do Sul, que terá uma capacidade de 63 bilhões de metros cúbicos quando estiver com rendimento total, complementa a Corrente do Norte, um gasoduto que cruza o fundo do Báltico transportando combustível diretamente da Rússia para a Alemanha. Os dois sistemas de transporte são parte da estratégia do Kremlin para contornar a Ucrânia, por onde circula hoje o grosso das exportações de gás russo para a Europa. Bruxelas quer que a Corrente do Sul se submeta às diretrizes comunitárias para a manutenção da concorrência e também tem objeções quanto à concessão dos contratos aos construtores do gasoduto. “Rússia assinou acordos intergovernamentais bilaterais com todos os países participantes e esses contratos não podem ser alterados ou denunciados de forma unilateral”, advertiu Miller na sexta-feira. Recentemente, a Bulgária saiu do projeto, o que em Moscou se atribui às pressões da UE e dos EUA. Entretanto, Miller afirmou que “o gás irá para a Bulgária em 2015”.

O anos de 2013 foi “estupendo”, disse o diretor-executivo da Gazprom, explicando a seus acionistas que o fornecimento de gás para a Europa alcançou um nível recorde nesse ano em que a Gazprom forneceu 30% do gás que se consumiu no mercado europeu. Além disso, a companhia se transformou em líder da obtenção de hidrocarbonetos no Ártico e pioneira na obtenção de gás no fundo do mar – e, por suas reservas, é líder no mundo, com 17% das reservas globais. “Não há alternativa ao gás russo”, disse.

O contrato com a China “transforma a estrutura do mercado mundial e dá o sinal de largada para o cumprimento acelerado do programa de exploração dos recursos da Sibéria Oriental e do Extremo Oriente”, afirmou, por sua parte, Victor Zubkov, presidente do conselho de administração da Gazprom. A construção do gasoduto para a China impulsionará o desenvolvimento das regiões da Sibéria Oriental, algumas das quais, como a Yakutia, não têm nem mesmo rede de gás.

Para desenvolver o projeto (chamado de “a força da Sibéria”) serão exploradas novas jazidas de gás em Irkutsk (Kovykta) e na Yakutia (Chaiandinski), serão construídos quase 4.000 quilômetros de gasodutos (1.200 deles na Yakutia) e será levado gás a quase 500 povoados e cidades, segundo Zubkov. Miller disse que a Gazprom já começou a negociar com a China um novo contrato para o fornecimento de gás pela chamada “rota ocidental”, um projeto de gasoduto pela região montanhosa de Altai, por onde quer exportar 30 bilhões de metros cúbicos extras. Se for confirmado o suposto interesse da Índia em trazer os gasodutos russos até sua fronteira, “será alcançado muito antes um volume de gás nos mercados asiáticos equivalente a nossos fornecimentos para a Europa”, afirmou o executivo da Gazprom.

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