O retrato do país do futebol
Paulo LIns, o autor de ‘Cidade de Deus’ retrata as contradições do Brasil de hoje
Ninguém está feliz no país do futebol. Não há uma família que fique tranquila com a segurança de um ente querido quando ele está na rua ou mesmo dentro de casa, seja qual for a hora do dia. Os ricos vivem em condomínios fechados cercados de guardas e circulam nas ruas com seus carros blindados numa tensão permanente. A classe média sabe que a qualquer momento alguém da família, ou mesmo um amigo, pode perder a vida num assalto. Mas a situação ainda é muito pior para os pobres das favelas e das periferias que podem ser mortos por bandidos ou pela polícia num dos países onde a polícia mata mais negros no mundo entre 15 e 25 anos, segundo várias pesquisas feitas ao longo dos anos.
Diante dos investimentos para a Copa, há muitos brasileiros que perguntam: porque não investir esse dinheiro em educação pública, saúde, transporte e saneamento básico? Essa pergunta surge porque a diminuição da violência depende mais dessas políticas públicas do que da ação policial.
No site da UOL, Gilberto Carvalho, ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República afirma: "a crítica que mais ouvi até agora é de que os gastos do governo federal com a Copa do Mundo prejudicaram os investimentos do país em saúde e educação. Entretanto, esse é um mito que não tem lógica nem fundamento. Não houve gastos do orçamento da União diretamente com a Copa. Não dá para aceitar que, por causa desses investimentos, a educação e a saúde estejam em péssima situação, como dizem alguns críticos mais exaltados. Em primeiro lugar, porque os 25,6 bilhões de reais gastos com estádios e obras ligados à Copa, desde 2010, não são comparáveis aos 825,3 bilhões de reais que o governo federal investiu em educação e saúde nesse mesmo período. Nos 12 estádios, que custaram oito bilhões de reais, o governo federal entrou com 3,9 bilhões de financiamento do BNDES. Mas esses financiamentos serão pagos. Nas obras ligadas à Copa, realizadas nas cidades-sedes, o governo investiu 17,6 bilhões, principalmente nos aeroportos, no transporte público de massa e nas telecomunicações. E essas obras permanecerão como benefícios permanentes para nosso país".
Todos sabemos que a maioria dos empregos criados para a preparação da Copa do mundo são temporários. Se o dinheiro investido para a Copa do Mundo é ínfimo, segundo o ministro, e voltará ao cofre público, o que se investiu nas causas realmente necessárias é muito mais ínfimo para o tamanho do problema. Justo porque com ou sem Copa, os 825,3 bilhões gastos nesse período não resultou melhora significativa na saúde, nem na educação. É preciso multiplicar esse investimento com dinheiro do Tesouro ou mesmo através de empréstimo para que se melhore de vez também o transporte e o saneamento básico no Brasil.
Sofri muito por ser negro, por ter vivido em uma favela e porque vi morrer minha mãe por falta de atenção médica no país do futebol
Não vamos negar que tivemos avanços na área social: o Bolsa-Família é um programa que deu certo, pois várias famílias ingressaram suas crianças nas escolas e tiveram melhora significativa na alimentação (no Brasil o assalariado de mão de obra barata, mesmo empregado e economizando ao máximo, passa fome ou come mal e o número de desempregados por falta de informação, ou por estar velho para serviços pesados são largados por toda a sociedade como pobres diabos, aumentando assim a violência). Mas o melhor é que várias famílias que receberam esse benefício, ao se reerguerem, abriram mão dele voluntariamente. No âmbito da Educação, o Reuni, o Prouni e o Pronatec são boas iniciativas, embora ainda paliativas para uma causa tão séria.
Devemos reconhecer também que as taxas de desemprego caíram de forma significativa. Assim como a iniciativa de contratar médicos de Cuba (país onde se faz uma das melhores Medicinas do mundo e exporta médicos para vários países) foi uma forma rápida de sanar paliativamente um problema que se arrasta por anos. Foi uma medida necessária diante da situação nas cidades distantes das capitais e de certo comportamento não memorável de uma pequena parcela de profissionais de saúde no Brasil.
As cotas estudantis também representaram um avanço, pois as pessoas oriundas de escolas públicas não tinham acesso às universidades justamente por que em algumas escolas muitas vezes faltam professores, material didático, além das greves, indiscutivelmente necessárias, mas que atrasam a vida dos alunos e tudo mais que estamos cansados de saber, isso sem falar na parca remuneração dos profissionais do ensino que não faz jus a grandeza do trabalho que executam. Há muita gente contra as cotas com a justificativa da necessidade de melhora no ensino público. De certo modo, concordo, porém enquanto essa melhora não chega, não se pode prejudicar as pessoas que fizeram a sua parte se formando a duras penas num ensino de péssima qualidade (reflexo do Estado) e mesmo assim não o abandonando e muitos trabalhando de dia e estudando de noite.
Uma das coisas mais tristes de nossa História recente foi ver a polícia espancando os professores em greve no ano passado, no Rio de Janeiro.
Mas é evidente que as cotas só se justificam se houver empenho para termos um sistema escolar público de qualidade. Daí sua importância no momento atual no qual a escola pública não é um “show” de ensino, de cultura, de pesquisa, de riqueza e de desenvolvimento espiritual através de todas as artes. O aluno tem de gostar de ir à escola, ela tem que ser atrativa as nossas crianças. O ensino público tem de ser uma coroa de esplendores para os seus alunos.
As cotas raciais também se justificam pelo histórico da condição do negro no Brasil que começa a frequentar o ensino, de fato, somente depois dos anos de mil novecentos e trinta tendo que trabalhar ainda na idade da formação escolar. Sem salário digno de poder ingressar no ensino privado e sem tempo hábil para fazer o dever de casa. Com remuneração sempre menor do que as pessoas de pele branca.
O problema tanto do ensino básico como do fundamental (que teve sua expansão 1930 no governo de Vargas), tem que ser resolvido de uma vez por todas, não pode ficar só nas mãos dos docentes que são verdadeiros heróis. Os municípios, os estados e a União, independente dos partidos, teriam que se unir para colocar pelo menos a educação e a saúde em alto padrão de qualidade, assim como erradicar a fome de uma vez por todas em nosso país.
Voltando a violência, no primeiro mandado do Sérgio Cabral foi instalada uma política de confronto sem limites onde morreram, e até hoje morrem, tanto as pessoas envolvidas com a criminalidade como as pessoas inocentes. A situação tomou proporções tão alarmantes a ponto de alguns artistas juntamente com outras pessoas da sociedade civil, onde também me incluo, fazerem um baixo assinado contra a matança que o governo promovia. Mais tarde assistiríamos a implantação da UPP’s como erradicação da criminalidade armada na Cidade do Rio de Janeiro. As UPP’s tornaram-se o carro chefe do Governo de Sérgio Cabral e tiveram o apoio de grande parte dos cariocas. Vi com bons olhos, acreditando na diminuição do armamento nas favelas e dos confrontos entre grupos armados com armas brasileiras, em sua maioria, além de outras oriundas de vários países europeus e também dos Estados Unidos. Cansei de ver meninos menores de idade com fuzis, metralhadoras, pistolas, revólveres de toda sorte desfilando pelos becos e vielas -um dado interessante é que pouco se fala dos traficantes de armas e munição. Os traficantes de drogas migraram para outras favelas, só houve uma pacificação nos lugares controlados por milícias, as favelas "pacificadas" vivem em "estado de sítio". As políticas públicas tão necessárias não chegaram como deveria ser.
O crime armado no Brasil é extremamente político porque lá estão os mais pobres, os que passam fome, os discriminados racialmente, os trabalhadores de mão de obra não especializada, os descendentes de escravos, os semianalfabetos, boa parte da população indígena que sofreu genocídio e são tão ou mais discriminados como os negros; os nordestinos migrados para as capitais mais ricas do país. São discriminados descaradamente pelos descendentes europeus e descendentes de imigrantes brancos das classes mais abastadas desde que Brasil é Brasil, e tiveram mais oportunidades sociais somente pelo fato de serem brancos (a cor do colonizador). A sociedade brasileira é racista assim como nos países da Europa e os Estados unidos. Estou farto dessa ideia de que somos miscigenados com a pobreza toda negra ou quase negra e os brancos ou quase brancos dominando a riqueza da nação.
Ninguém aqui se assume como racista, ninguém aqui descrimina. A verdade é que boa parte dos políticos não presta como boa parte dos brasileiros que se dizem bonzinhos e solidários. Vivemos num país deficiente e digo isso porque sofri muito por ser negro, favelado e vi minha mãe morrer por falta de atendimento médico no país do futebol.
Costuma-se colocar a culpa de toda a criminalidade no traficante de drogas, mas ninguém vira bandido de uma hora pra outra, a entrada para a criminalidade é lenta, perversa e se dá na idade escolar. Atirar na polícia não é para qualquer um. Essa disposição é pra quem sempre viveu no inferno e resolveu enfrentar o Diabo. Conheço bem traficante de drogas, pois passei boa parte da infância, juventude e maturidade ao lado deles: analfabetos, semianalfabetos, de família desorganizada, são os mais pobres entre os pobres, vistos como feios, sem direito de defesa. A punição é demasiadamente necessária assim como a recuperação dos infratores e não torná-los mais bandidos como faz o sistema penal brasileiro. A nossa organização social é que os tornam delinquentes.
Não há mais tempo para jogar a culpa na História: colonização, escravidão, ditadura e dominação econômica europeia e norte americana. Já vencemos tudo isso e agora é hora de reparar os erros. Não dá mais para aceitar uma escola miserável, um hospital desaparelhado, crianças contraindo doenças em esgotos a céu aberto por todo território e esse sistema de transporte claudicante. É hora de fazer desse país uma nação.
Tu suscripción se está usando en otro dispositivo
¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?
Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.
FlechaTu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.
Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.
En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.
Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.