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20 bilhões de reais para varrer o deserto

O consórcio que implanta o trem de alta velocidade até Meca aprende a dominar as dunas O Rei Juan Carlos viaja à Arábia Saudita, onde empresas espanholas ganharam o seu maior contrato no exterior

Natalia Junquera
Juan Carlos (à dir.) e o príncipe saudita Muqrin bin Abdulaziz Al Saud.
Juan Carlos (à dir.) e o príncipe saudita Muqrin bin Abdulaziz Al Saud.Sergio Barrenechea (EFE)

Pode-se domar o vento? Controlar a areia? O consórcio espanhol que em outubro de 2011 ganhou o maior contrato obtido por empresas do país no exterior, o do trem de alta velocidade AVE entre Medina e Meca, na Arábia Saudita, por 6,736 bilhões de euros (20,4 bilhões de reais), passou um ano tentando isso, estudando, com imagens via satélite, como se comportam as dunas do deserto. Não é o único desafio enfrentado pelos engenheiros que trabalham para levar esse tipo de transporte à Arábia Saudita; a um país em que a decapitação por sabre, o apedrejamento e a amputação são punições habituais e no qual as mulheres não podem dirigir. A um reino que vive, em muitos aspectos, como na Idade Média; mas que quer e pode pagar  —é o maior produtor mundial de petróleo— as últimas novidades em tecnologia para unir duas cidades que considera sagradas.

O Rei da Espanha, Juan Carlos, que chegou a Jeddah em uma nova viagem de diplomacia financeira, ouve os empresários espanhóis que enfrentam essa obra faraônica cheia de obstáculos. O monarca intermediou para que a Espanha ganhasse esse macrocontrato dos franceses.

A areia está presente em todos os lados, sobre as vias e pode danificar a sofisticada maquinaria com que funciona o AVE. Para que a manutenção, que o consórcio se comprometeu a realizar na obra por sete anos prorrogáveis a 12, não arruíne os espanhóis, os engenheiros projetaram valas e muros no deserto, e em alguns trechos, em vez das pedrinhas que ficam entre os trilhos (que servem como um colchão para o trem quando este passa), se colocou concreto. “A areia terá de ser retirada todos os dias”, explicam fontes do consórcio. “Mas é mais fácil varrer uma placa de cimento que tentar tirar a areia de espaços entre um montão de pedrinhas", acrescentam.

Os engenheiros espanhóis confiam que essas manobras solucionem o problema. Nunca antes um AVE foi construído no deserto. “A manutenção será mais cara, pela areia e, embora pareça mentira, porque ali também há chuvas torrenciais, que movem o terreno, mas a obra continua sendo rentável. Não somos uma ONG”, explicam.

Mas nem a areia nem a chuva são os maiores desafios. “O mais difícil é o lado humano: organizar 244.000 passageiros todos os dias; com o fato de que a cada dez minutos vai sair um trem com homens e mulheres separados, muitos dos quais não falam nem árabe nem inglês. Muçulmanos chegados de todo o mundo, alguns pobres, que nunca saíram de suas casas, que entrarão no trem cheios de pertences; que não vão querer ser separados de suas coisas, talvez todo o seu patrimônio, porque o venderão para pagar aquela que provavelmente poderá ser a única viagem de sua vida, a visita à Meca. E que na volta vão querer trazer grandes tambores de água benta para distribuir em seu povoado”, explicam fontes do consórcio. Tudo isto 23 horas ao dia. A hora 24 é de manutenção.

O consórcio tem que fazer, além disso, um trem exclusivo para a família real saudita. E responder a todas as suas petições não está tornando fácil o esboço, segundo as mesmas fontes.

O consórcio tem de entregar a obra em dezembro de 2016. O contrato inclui sanções financeiras caso isso não ocorra. Na Arábia, explicam, não entendem de custos maiores nem atrasos. Há uma margem de 10% sobre o preço estipulado, mas nem um centavo a mais. “Os árabes querem o melhor e o mais barato”, asseguram as mesmas fontes.

Um dos técnicos do trem do deserto foi detido em decorrência de um superfaturamento do AVE na semana passada na Arábia Saudita. O Ministério do Desenvolvimento espanhol o afastou de suas funções. Segundo o consórcio, os sauditas não perguntaram pelo assunto. “Também não se preocuparam quando surgiu o problema da Sacyr no Panamá. No entanto, se inquietaram quando a Espanha esteve à beira do resgate (internacional) e o prêmio de risco estava nas nuvens”, asseguram.

A primeira parte da obra, a estrutura, está sendo feita pelos chineses, que estão atrasados e não estão fazendo um trabalho muito apurado, segundo o consórcio. “Encontramos defeitos que temos de corrigir. Para ganhar tempo, no trecho 5, que acabam de nos entregar, vamos corrigindo e construindo ao mesmo tempo”. Dos 450 quilômetros de via, os espanhóis estão trabalhando em 185.

O outro grande condicionante é a religião. Na Arábia Saudita a única lei é a estrita interpretação do Corão. As mulheres não podem andar sozinhas. Precisam de um mehram (guardião) masculino. “Conseguir vistos para espanholas solteiras que trabalham no projeto foi muito difícil”, explicam fontes do consórcio, que teve de tramitar mais de 6.000 vistos para mil empregados, aproximadamente, por esse contrato. E existe outro problema: às cidades santas só podem ir muçulmanos. “Por isso estamos formando maquinistas muçulmanos de diferentes países em cursos de 1.100 horas”, explicam fontes da obra. Em todas as bases de trabalho do trem, no meio do deserto, foram construídas mesquitas para os operários, que param para rezar.

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