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Coluna
Artigos de opinião escritos ao estilo de seu autor. Estes textos se devem basear em fatos verificados e devem ser respeitosos para com as pessoas, embora suas ações se possam criticar. Todos os artigos de opinião escritos por indivíduos exteriores à equipe do EL PAÍS devem apresentar, junto com o nome do autor (independentemente do seu maior ou menor reconhecimento), um rodapé indicando o seu cargo, título académico, filiação política (caso exista) e ocupação principal, ou a ocupação relacionada com o tópico em questão

Bola perdida

Rodrigo havia sido convocado para defender o Brasil na copa de futebol de meninos de rua, como capitão do time. Mas, uma semana antes do início da competição, foi morto com cinco tiros

Em meados dos anos 1990, o centro de São Paulo já se encontrava em franca decadência, mas eu gostava de passear por ali. Recém-chegado, achava a Rua Barão de Itapetininga a mais bonita da cidade e, aos sábados, flanava por ela, partindo da Praça da República até o Teatro Municipal, uma, duas, várias vezes, a observar o movimento. Hoje sei que, transido de solidão, na verdade sobrepunha às pedras portuguesas da via paulistana as pedras portuguesas do calçadão da Rua Halfeld, de Juiz de Fora, maneira de enganar a saudade que me lambia as mãos como um cachorro indigente.

E foi na Rua Barão de Itapetininga, numa manhã fria de sol pálido, que me deparei com Alcino.

Sou filho da comoção provocada pela seleção brasileira de 1970. Impossível esquecer aquele domingo, 21 de junho, o grito uníssono dos mais de 100 mil torcedores que lotavam o Estádio Azteca comemorando a goleada do Brasil, 4 a 1, sobre a Itália. A ditadura militar, no auge da bestial repressão política, insuflava nosso orgulho, os brasileiros éramos os melhores do mundo – em tudo! E, se antes me interessava por futebol, depois daquela conquista o futebol passou a ser minha vitamina. Lateral-esquerdo, disputava, descalço e sem camisa, intermináveis partidas no campinho da Industrial, em Cataguases, imaginando maracanãs e uniformes rubronegros...

Mas, mais que isso, tornei-me assíduo leitor da Placar, revista especializada em esportes...

Aos sábados à tarde e domingos pela manhã, participava de um acirrado campeonato de jogo de botão, na Vila Teresa, promovido pelos irmãos D. e G.. Dona E., mãe deles, mantinha nos fundos da casa um curso de corte e costura, única opção séria para as moças que se recusavam a tornar-se operárias das tecelagens. Nos fins de semana, marcávamos no chão de cimento liso os limites do campo com giz de alfaiate e, entre mesas forradas por panos brancos, máquinas de costura, manequins, réguas, bobinas, caixas de aviamentos, amostras de tecido e fitas métricas, esquecíamos o tempo que lá fora devorava rancoroso as nuvens.

Toda semana, D. e G. compravam a Placar, que somente chegava à banca do seu Leone às quartas-feiras. Depois que a liam e reliam, eles a emprestavam para mim, o que ocorria em geral na segunda-feira seguinte. Assim, eu tomava conhecimento das notícias com sete dias de atraso, e depois tinha que devolvê-la intacta. Talvez por isso, por não poder tê-la à mão para consultá-la quando necessário – e, nas nossas discussões apaixonadas, sempre era necessário consultá-la – acabava decorando os fatos todos. Sabia a escalação completa dos principais times brasileiros e das mais importantes seleções mundiais, os resultados em detalhes das partidas, a posição dos clubes nas tabelas nacionais e regionais, e conseguia, até mesmo, identificar o rosto dos jogadores mais freqüentes nas fotografias que ilustravam as páginas da revista...

Rodeado por uma pequena, mas entusiasmada platéia, o negro alto e corpulento, vestido com o uniforme tradicional do Grêmio – camisa de grossas listras verticais pretas e azuis entremeadas por listras finas brancas, calções pretos, meiões brancos – e empoleirado numa gasta chuteira, fazia embaixadas, ou seja, sustentava a bola no ar, equilibrando-a com toques leves e sutis dos pés e joelhos. Acerquei-me para acompanhar a exibição e então reconheci, por trás daquele rosto envelhecido, inchado e descorado, o centroavante goleador Alcino, titular do time gaúcho de 1976. Quando, cansado, finalmente perdeu o controle da bola, algumas pessoas aplaudiram e, antes de se dispersarem, arremessaram moedas a uma caixa de papelão. Eu permaneci extático, pensei em pronunciar seu nome, mostrar que sabia de seu passado glorioso, mas, quando mirei seus olhos, percebi que Alcino não morava mais naquele endereço.

Essa cena veio à tona ao tomar conhecimento da história de Rodrigo Kelton. Entre 28 de março e 10 de abril, seleções de 19 países participaram no Rio de Janeiro do Street Child World Cup, espécie de copa do mundo de futebol disputada por crianças de rua (meninos e meninas), patrocinada por uma ONG inglesa. Rodrigo, 14 anos, havia sido convocado para defender o Brasil, como capitão do time. Mas, uma semana antes do início da competição, foi morto com cinco tiros – dois na cabeça e três nas costas – em Genibaú, bairro da periferia de Fortaleza. Filho de pai alcoólatra e mãe usuária de crack, há anos ele vagava pelas ruas da cidade, sonhando tornar-se jogador de futebol profissional. Agora, Rodrigo Kelton é estatística, apenas uma vítima da sétima mais violenta cidade do mundo – 10 assassinatos por dia, em média.

Alcino nasceu menino pobre no Rio de Janeiro e tornou-se ídolo do Clube do Remo, de Belém do Pará. Lutou a vida inteira contra o alcoolismo e, esquecido e decadente, morreu em 2006, de câncer, aos 55 anos.

Nesses nossos tempos obscuros, os Rodrigo Kelton não chegam nem mesmo a ser Alcinos.

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