_
_
_
_
_
Coluna
Artigos de opinião escritos ao estilo de seu autor. Estes textos se devem basear em fatos verificados e devem ser respeitosos para com as pessoas, embora suas ações se possam criticar. Todos os artigos de opinião escritos por indivíduos exteriores à equipe do EL PAÍS devem apresentar, junto com o nome do autor (independentemente do seu maior ou menor reconhecimento), um rodapé indicando o seu cargo, título académico, filiação política (caso exista) e ocupação principal, ou a ocupação relacionada com o tópico em questão

O lado oculto da Crimeia

A crise ucraniana ressuscita a Guerra Fria e tem uma dimensão que transcende a deposição de um presidente ou a entrada do país para a Comunidade Europeia

As hipotecas da História não morrem, ficam às vezes adormecidas, podem durar séculos e renascer quando menos se espera. É o caso da Crimeia, pequeno território que viveu sempre tempos turbulentos, sofridos, tendo sido habitada por inúmeras etnias que se renovavam através dos tempos. Os tártaros, que a haviam ocupado depois de venezianos e genoveses, de 1441 a 1783, e formavam o principal núcleo da população, terminaram sendo vítimas da política demográfica soviética, quando Stalin, em 1944, os transferiu para o Uzbequistão, na Ásia Central; morreram nessa deportação mais da metade. Com o fim da União Soviética, eles voltaram e hoje são cerca de 12,5% da sua população. Essa política, aliás, antecedia a União Soviética e, nos últimos anos do tsarismo, levou quase dois milhões de ucranianos para a Ásia Central e a Sibéria. Tanto a Crimeia quanto a Ucrânia também tiveram sua população dizimada pelo confisco de alimentos nas décadas de 1920 e 1930.

Como lembrança, vem a Guerra de 1853, em que a geopolítica pesou na tentativa russa de se expandir à custa do declínio do Império Otomano, aliado à França e à Inglaterra, sob o pretexto de defesa dos direitos de católicos e ortodoxos na Terra Santa. Morreram mais de 500 mil pessoas. A Rússia atacou os estados do Danúbio, com grandes perdas, e acabou recuando para a Crimeia, refugiando-se em Sebastopol, onde resistiu a um ano de cerco. Depois da queda da cidade, os russos aceitaram a paz.

Em 1921, a Crimeia se tornou uma república autônoma da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Na Segunda Guerra Mundial, os alemães tiveram dificuldades, mas conquistaram a península em 1941. Mais uma vez Sebastopol foi a última a cair. Os alemães foram expulsos em 1944.

Em 1954, Kruschev transferiu a Crimeia para o domínio da Ucrânia. Com a queda da URSS, a Crimeia passou a fazer parte da Ucrânia. Em 1992 se declarou autônoma por um período de dias. Em 1995 tornou-se a República Autônoma da Crimeia.

Logo depois a Rússia concordou em dividir a frota do Mar Negro, baseada em Sebastopol, com a Ucrânia.

A Crimeia é uma região estratégica, que facilita, pelo Mar Negro, a saída da Rússia para o Mar Mediterrâneo. Ali, a URSS tinha, e a Rússia tem, bases navais altamente armadas, foguetes intercontinentais, com capacidade de portar ogivas nucleares, e grande parte de sua poderosa força naval.

Kruschev, que era da fronteira da Ucrânia com a Rússia, talvez com ânimo de dar mais importância e prestígio à sua província natal, anexou a

Crimeia à Ucrânia, acreditando que a URSS seria eterna. Com a dissolução do Império Soviético, a Ucrânia, que já tinha fábricas de foguetes e bases estratégicas, passou a ser mais que fundamental para a defesa da Rússia. Daí a importância da Crimeia para manter sua estrutura militar. Até hoje os russos não entendem por que perderam a Crimeia, que criou para eles alguns problemas.

Putin aproveitou a crise ucraniana para diminuir seu desgaste interno e vislumbrou uma rara e inesperada oportunidade de recuperar a Crimeia. Já os europeus, com essa perda, ficam mais vulneráveis ao poderio russo, além da importante dependência do gás russo, que passa pela Ucrânia.

A crise ucraniana ressuscita a Guerra Fria e tem uma dimensão que transcende a deposição de um presidente ou a entrada do país para a Comunidade Europeia.

Esse fato acontece quando a Primavera árabe, vista com grandes alegrias pelo Ocidente, tornou-se um grande fracasso, com a desestabilização da região e o reforço para os eternos inimigos xiitas que eles tentaram enfraquecer. O resultado foi o estabelecimento de estados teocráticos, como o Iraque, o maior erro e fracasso dos Estados Unidos, levado à frente por George Bush por motivos bem pessoais, evidenciados quando ele disse uma vez: “Sadam quis matar papai.” Essa guerra não só foi uma vergonha militar como gerou uma desestabilização da economia americana, que assumiu gastos gigantescos, e teve repercussão no mundo inteiro, principalmente na Europa. Se não bastassem esses desastres, como extensão e reflexo, surgiu a guerra na Líbia, cujo fim ninguém conseguiu vislumbrar e em nada ajuda o Ocidente. A Rússia soube aproveitar esses fatos, e Putin deu uma demonstração de capacidade quando conseguiu eliminar as armas químicas sírias e ajudou na solução do insolúvel enriquecimento de urânio do Irã.

É nesse clima que os americanos veem escapar de suas mãos a amarra russa da Crimeia ucraniana para a volta de uma Crimeia russa, com a hegemonia russa sobre o Mar Negro e abertura para o Mediterrâneo.

Assim, quem pensa que esse fato é de uma simples solução diplomática está fora do mundo. Na mesa, está o confronto das antigas potências e suas hipotecas: as cartas principais, para desgraça da Europa, de volta à Rússia.

José Sarney é ex-presidente do Brasil (1985-1990).

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_