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O poeta dos olhos tristes

A vida do poeta argentino Juan Gelman foi marcada pela morte de seu filho e de sua nora pela ditadura e a busca de sua neta

Juan Cruz
Gelman, em 2004. / LUIS MAGÁN
Gelman, em 2004. / LUIS MAGÁN

Juan Gelman, o poeta dos olhos tristes, era capaz de se levantar de madrugada para dedilhar o violão; nos tempos em que seu pesadelo era maior, pois buscava com afinco, mas sem esperança, sua neta sequestrada em 1976 pelos golpistas de Videla, a poesia e aqueles momentos da noite lhe devolviam à vida, como se ela lhe fosse emprestada. Essa longa história que o converteu em órfão de seu filho e em avô em perpétuo estado de incerteza encheu sua vida de tristeza, e “o castigo”, disse certa vez com sua enorme capacidade para a melancolia e o sarcasmo, "é um território muito amplo, provavelmente argentino”. “Ele nunca se livrou deveras do castigo”.

Quando, em 2000, sua neta apareceu, uma jovem que tinha vivido até então com um casal arranjado pelos militares, a dor diminuiu, mas ele manteve sua trilha. Com muita tristeza, lidou com a situação com a dignidade pessoal de um lutador. Às vezes, quando recitava em público e ainda havia aquela sombra na sua vida, cada verso era um esforço e uma lágrima, como se chorasse em voz baixa. Por isso, surpreendia naqueles momentos em que roubava o violão de alguém e ria e cantava como se fosse outro.

Essa busca pela neta foi a razão maior de sua tristeza, mas nunca foi um homem derrotado. Agora, consciente da doença que acabou com sua vida, ainda teve energia para desejar a seus amigos um ano menos difícil. Ele voltou do hospital, onde entrou e saiu desde novembro do ano passado, porque queria dizer adeus a tudo isso em sua casa.

Gelman nasceu na Argentina em 1930. O golpe de Estado de Videla fez com que fosse ao exílio no México, de onde jamais quis voltar a seu país. Sua nora estava grávida quando foi sequestrada; nunca mais houve notícias dela e do filho de Gelman; o poeta estava certo de que a criança vivia em algum lugar. A mobilização mundial em favor de sua luta para encontrá-lo bateu contra a inépcia do Vaticano, a quem pediu ajuda, e dos governos do Uruguai e da Argentina, mas teve o apoio de seus escritores, jornalistas e ativistas. Seus amigos José Saramago e Eduardo Galeano lideraram uma campanha mundial em favor da busca pela neta; essa campanha se intensificou quando, por fim, houve uma notícia de que a menina existia, e em 2000 finalmente ocorreu esse encontro. Macarena Gelman tem agora 35 anos de idade e vive no Uruguai . Naquela noite, seu amigo Mario Benedetti disse: “Eu falei com Juan e ele está mais do que feliz”.

Essa notícia foi para ele a maior emoção de sua vida. Sua poesia, irônica e secreta, escrita com melancolia, viveu momentos mais leves, mas ele continuou sendo o poeta dos olhos tristes que, por vezes, ocultava o riso atrás do espesso bigode. Alto e magro, Gelman caminhava deixando sempre para trás a fumaça de seu cigarro. Sua voz tinha a cadência do silêncio; podia recitar diante de milhares de pessoas, mas nunca levantou a voz. Ultimamente tinha emagrecido muito, por isso quando se movia parecia que voaria através da fumaça.

Em abril do ano passado, quando publicou o seu livro Hoy, de prosa poética, como muitos outros seus, explicou como se sentiu quando um dos assassinos de seu filho foi condenado. “Entre os culpados pelo assassinato do meu filho havia um general que foi condenado à prisão perpétua. Mas quando proferiram a sentença eu não senti nada. Nem ódio, nem alegria. E eu me perguntava o porquê, e isso me levou a escrever, para me perguntar o que tinha acontecido”. Nessa conversa, Gelman resumiu o seu descontentamento com o papa Francisco, a quem tinha apelado, quando o atual pontífice ainda era o bispo Bergoglio, para ajudar a encontrar seu filho. O bispo lhe disse que não podia fazer nada, “mas contou outra coisa à Justiça, que tinha feito esforços sem sucesso”.

Essa longa luta (35 anos à procura de vestígios da vida de familiares) não só marcou o poeta como pessoa, mas encheu de amargura e sarcasmo a sua escrita. Ele tinha, dizia, “a confiança ferida”. Também com relação ao futuro do mundo. Esse homem está nos seus versos.

Ele ganhou os principais prêmios da literatura em língua espanhola: O Rulfo, o Reina Sofia de poesia, o Cervantes (2007). Para ele, a poesia era “uma forma de resistência”, mas esse compromisso civil não mudou sua maneira de ser um poeta. Hermético?, se perguntava. “Não, o que eu faço é respeitar o leitor, obrigá-lo a ler por dentro”. No Ateneu de Madri, em um de seus recitais tumultuados, sete anos após a descoberta de sua neta, ele leu seu poema pai de então como se suas mãos, seus olhos e ele todo fossem tremer. “Assim que voltaste / como se não tivesse acontecido nada / como se o campo de concentração não / como se há vinte e três anos / que não escuto tua voz nem te vejo / devolveram o urso verde tu / sobretudo longuíssimo e eu / pai de então / voltamos à tua presença incessante / nestes ferros que nunca terminam / nunca acabarão? Já nunca acabarás de cessar / voltas e voltas / e tenho que te explicar que estás morto”. A ovação dolorida das pessoas foi a confirmação de que o público e o poeta se leram por dentro.

Essa foi a história de sua vida: o filho morto, a nora morta, o desaparecimento da neta que deixou feridas. Tudo isso continuava vivo em seu olhar, como nesses versos pai de então. Foi comunista, jornalista e resistente, e a sombra desta história não lhe permitiu esquecer jamais essa militância contra o esquecimento.

Poema original, em espanhol:

Foi um resistente comprometido também com as mudanças em seu país para reverter os efeitos da lei de ponto final proclamado pelo presidente Alfonsín. Essa “impunidade terrível” foi anulada pelo presidente Néstor Kirchner e levou à condenação dos repressores, incluindo os repressores de sua família. E a partir desse ponto de vista, ele defendeu o juiz Garzón quando o magistrado tentou perseguir a ditadura de Franco, na Espanha, e restaurar a dignidade dos perseguidos durante o regime. “Eu não entendo”, disse ele, “a punição a Garzón por rastrear a memória”.

Um dia eu lhe perguntei quem era. E ele disse:

- Quem sabe. Eu, não.

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