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MEMÓRIA
Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

1914 e os fantasmas do passado

A Grande Guerra intraeuropea desapareceu da memória coletiva. Enquanto crescem as identidades obsessivamente locais, ainda não há nada específico no ensino que nos identifique como europeus

ENRIQUE FLORES

Em um livro de fotos antigas da cidade de Reims, encontrei uma muito singular, que tem por título Un petit écolier. Um menino de 8 ou 9 anos, usando botas, bata escolar e uma pasta pendurada no pescoço, tem o rosto coberto com uma pequena máscara antigás, tampada na boca e queixo por um lenço branco. Não consta a data exata, mas corresponde a algum dos anos da I Guerra Mundial, quando a região francesa da Champagne-Ardenne sofreu terrivelmente por ser frente de batalha. “A cidade de Reims consegue, por si mesma, nos fazer sentir muito mais próximos da guerra, porque em seu interior se respira uma desolação absoluta.” Isso escrevia a romancista norte-americana Edith Wharton no livro Fighting France, resultado de suas viagens pelas frentes de batalha, de Dunquerque até Belfort.

A autora de A Idade da Inocência (Prêmio Pulitzer, 1920) vivia na França desde 1910, em Paris. Ali a surpreendeu o início do conflito. Além de escrever essas crônicas para a Scribner’s Magazine, colaborou com a Cruz Vermelha francesa, e por isso lhe outorgaram a Legião de Honra. Em 13 de agosto de 1915, ela assinala sua passagem pela cidade do rio Vesle, duplamente milenar, em cuja extraordinária catedral Joana d’Arc fizera coroar a Carlos VII, em 1429. Wharton, quando da sua visita, assistiu a um acontecimento memorável, o bombardeio da cidade e o incêndio de grande parte desta joia arquitetônica. “Quando começaram a cair as bombas alemãs, a fachada ocidental estava coberta de andaimes. Os projéteis lhes atearam fogo, e toda a catedral ficou envolta em chamas.” Wharton se estremece com aquela visão dantesca, mas, ao mesmo tempo, fica igualmente fascinada pelos jogos de cores desprendidos das línguas de fogo. “A catedral do Reims resplandecia em todo seu esplendor e, ao mesmo tempo, morria diante de nós, como um pôr-do-sol”.

Quando a guerra terminou, em 1918, a catedral tinha um aspecto lamentável, como o resto desta histórica urbe. Reconstruir tudo levou décadas. Ainda hoje, em cada edifício do casco histórico há uma placa comemorativa. Quando o conflito terminou, Reims pensou que aquele pesadelo não retornaria nunca, mas, apenas duas décadas depois, os mesmos sofrimentos regressaram intensificados. Os remenses, os cidadãos de Reims, cidadãos da cidade de Colbert (ministro de Luís XIV), os cidadãos do Senhor de La Salle, da cidade à qual La Fontaine havia qualificado como a sua favorita, emblema e honra da França, devem ter se sentido como Jó: “Se ele [Deus] me mata, nada mais tenho a esperar, e assim mesmo defenderei minha causa diante dele” (Jó, 13:15).

Os europeus só aceitarão a unificação se houver uma identidade comum

Reims foi das primeiras cidades que os nazistas tomaram. Hoje, as placas da reconstrução dividem espaço com outras terríveis, que recordam as detenções e assassinatos da Gestapo. A sede desta estava instalada em um palacete da Rue Jeanne d'Arc. Esse espaço, do qual só se conserva a tela da fachada, é hoje um jardim onde estão inscritos os nomes dos que ali foram torturados e morreram por defender “sua liberdade”. Sempre entendi que não só era por defender a liberdade dos franceses, mas sim da humanidade. Estas placas são vozes que hoje poucos escutam, acreditando que nada do passado pode voltar a se repetir. Tomara!

Luuk van Middelaar, um jovem intelectual ligado ao presidente do Conselho Europeu, Herman van Rompuy, e autor de um magnífico ensaio intitulado A Passagem para a Europa, escreve sobre a amnésia que o transcurso do tempo provoca nas novas gerações: “A última guerra intraeuropeia [excetuando as dos Bálcãs] desapareceu da memória coletiva. O sofrimento foi se diluindo. A paz na Europa se transformou em algo que se dá como óbvio. Essa forma de legitimidade ‘romana’ deu brilho ao ato fundacional, mas já não servirá mais, exceto ao preço de uma nova guerra”.

Estremeço ao contemplar as imagens das ferozes lutas entre policiais e grupos de extrema direita, neonazistas, espalhados de novo por toda a geografia europeia, da Grécia até a França, inclusive já subindo as escadarias dos respectivos Parlamentos, aos quais, certamente, voltariam a atear fogo. Estremeço igualmente com os antissistemas de qualquer sinal. Os fantasmas do passado continuam aí, embora os acreditássemos exorcizados com a letra daquela canção que Marlene Dietrich cantava em A Sua Melhor Missão, de Billy Wilder: “Entre as ruínas de Berlim / as árvores florescem como nunca fizeram / Às vezes, à noite, você sente o pesar / O perfume de um doce despertar / É quando finalmente percebe / que os fantasmas do passado não regressarão / Uma nova primavera irá começar…”. Para afastar esses fantasmas do passado, ou seja, todas as guerras civis europeias ao longo dos séculos, a Comunidade deveria ter se esforçado mais para levar a cabo programas de educação comum, nos quais se explicasse a história do continente como algo de que todos participamos, e na qual não há vencedores nem vencidos. Fortalecer o conhecimento comum entre os jovens, facilitar a aprendizagem das línguas e normalizar o movimento de estudantes entre colégios e universidades. Ainda não há nada específico no ensino fundamental, médio e universitário que nos identifique como europeus.

Enquanto isso, crescem na Europa as identidades mais obsessivamente locais, centradas em alguns países, mas cuja contaminação pode se estender rapidamente pelo resto de outros Estados que ainda se sentem ilesos. A Comunidade Europeia, mais centrada em assuntos econômicos e de poder, relegou a um segundo ou terceiro plano os assuntos educativos e culturais – para ambos, orçamentos medíocres e relevância insignificante. Nos cem anos do início da I Guerra Mundial, quantos meninos europeus poderiam dar uma explicação coerente da mesma, a partir da sua condição comunitária, em vez da nacional? Quantos programas estão neste momento sendo desenvolvidos pela Comunidade para explicar aos nossos jovens aqueles fatos que se prolongariam em outra luta quase sucessiva? Haverá consciência hoje de que a destruição da catedral do Reims era a destruição de um patrimônio não só francês, mas também europeu e, é óbvio, universal?

A Comunidade tem relegado a um segundo ou terceiro planos os assuntos educativos e os culturais

No livro de Van Middelaar há um capítulo muito ilustrativo do que acabo de afirmar. Um capítulo dedicado a enumerar as derrotas que muitos Estados europeus infligiram à Comunidade, negando-se a tomar medidas unificadoras na política educativa e, sobretudo, cultural. Enumerá-las aqui seria prolixo, mas resgatarei um dos exemplos que ele dá. A Comissão encomendou a redação de um livro de história da Europa dirigido ao público e editado em muitos idiomas: Europa: História de Seus Povos (1990). O autor, Jean Baptiste Duroselle, narrava o triunfo moral “da unidade europeia sobre as forças malignas da divisão”. As críticas foram terríveis, sobretudo na Inglaterra e na França. Finalmente, a Comissão se retirou do projeto. O mesmo ocorreu com um livro-texto. Doze historiadores, um de cada país, mantiveram brigas eternas já não só pelos conteúdos, mas sim pela terminologia. Tudo isto demonstrava como é difícil entrar num acordo sobre uma “versão europeia neutra” dos acontecimentos históricos.

Os fracassos em assuntos culturais se acumulam: problemas para a livre circulação de bens e serviços culturais, problemas para a criação de uma indústria cultural europeia, problemas de coordenação para programar projetos culturais comuns, problemas na defesa do patrimônio histórico e artístico comum, fracasso na criação de institutos culturais comunitários, fracasso na criação de meios audiovisuais, na coprodução e distribuição de filmes etc.. Mas o mais impressionante é a aceitação do fracasso por parte da Comissão e do Parlamento a respeito de que a União tenha um eixo cultural comum. Desde o Tratado de Maastricht, em 1992, aceitou-se que a União não possuía uma cultura única (o que significava não deixar de reconhecer a pluralidade), e desde então se evitou falar em “cultura europeia”. Concordo com Van Middelaar quando afirma que a unificação europeia só se conseguirá se os europeus a quiserem; que “os europeus só a quererão se existir uma identidade europeia”, e esta só se desenvolverá se as novas gerações tiverem informação adequada e suficiente. Até hoje não é assim.

César Antonio Molina foi ministro de Cultura e dirige a Casa do Leitor.

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