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Seu Trasso, figuraça da gastronomia paulistana

Thrassyvoulos Petrakis era a alma do Acrópolis. Outros restaurantes da cidade têm também suas almas

Seu Trasso no Acrópolis em 2009.
Seu Trasso no Acrópolis em 2009.Danilo Verpa (Folhapress)
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Não sei se ele era um restaurateur, no sentido mais clássico do termo. Nem meramente um patron, aquele que é proprietário e também comandante. Deixando francesismos de lado, eu diria em português claro que Thrassyvoulos Petrakis, a alma do restaurante Acrópolis, era uma das figuraças da gastronomia paulistana. Como Nello Rossi, Giovanni Bruno e tantos outros. Seu Trasso, como ficou conhecido, morreu aos 98 anos, depois de mais de meio século trabalhando no dia a dia da casa que se tornou sinônimo da culinária grega em São Paulo.

Seu Trasso, por décadas, cuidou das compras (sempre cedinho, toda manhã), da organização do despojado salão, das sugestões da cozinha, de receber os clientes e supervisionar tudo o que acontecia no Acrópolis. Abria e fechava a lojinha, como muitos imigrantes – de diferentes ramos comerciais e nacionalidades – do Bom Retiro. Começou como garçom (o restaurante foi fundado em 1959) nos anos 60, virou proprietário nos anos 70. Com método e estilo próprios, ele conseguiu a proeza de criar um estabelecimento longevo, bem-sucedido, mesmo trabalhando com uma especialidade culinária menos difundida, em comparação com a italiana, a japonesa, a libanesa.

O esquema de trabalho e a ambientação também sempre fugiram do padrão. O cliente vai até a entrada da cozinha, onde escolhe os pratos, simples e bem apurados, como moussaká, lula recheada, polvo ao vinho; senta-se em mesas despojadas e apertadas; pede bebidas e outros itens a garçons sem muitos salamaleques; paga um preço razoável (que, às vezes, por conta de um desprevenido entusiasmo nos pedidos, pode ser alto). Tudo com senso de padrão. Mas a essência, reconheçamos, era a presença do Seu Trasso, circulando, ajudando (e atrapalhando), orientando escolhas, conversando com um aqui, outro ali. Eu me lembro, particularmente, de uma conversa nossa em 2004, na mesma semana em que a Grécia havia vencido a Eurocopa, uma zebra inacreditável. O homem estava radiante, brincando com todos à volta, sempre com seu jeito peculiar de se expressar. “Quer uma pergunta? Pode querer.” Era assim que ele se mostrava pronto para a entrevista.

Vai fazer falta, enfim. Como já fazem vários outros de sua estirpe, que nos deixaram nos últimos anos. Estou me referindo ao dono-carismático-onipresente-que-é-patrimônio-da-cidade. Uma espécie sob risco de extinção, pelas próprias mudanças de conceitos e práticas do mercado.

Eu lembro vivamente, por exemplo, de Nello Rossi circulando pelas mesas da Nello’s, a cantina que fundou em 1974. Sempre recolhendo, de forma obsessiva, latas vazias, copos sujos, guardanapos usados. Romano de nascimento, ator de formação, ele ficou famoso como garoto-propaganda da US Top, com o bordão “Bonita camisa, Fernandinho”.

Nello era um contador de histórias espirituoso, em especial do mundo do cinema, dos tempos em que participava de filmagens na Cinecittà em estúdios americanos. Também sabia ser idiossincrásico (um tanto turrão, diriam alguns) e, de certa forma, sempre esteve um pouco na vanguarda em algumas decisões. Como o fato de ter escolhido o bairro de Pinheiros para se instalar, numa época em que a maioria das casas italianas ia para a região do Bixiga. Ou criando um salão especial para fumantes, muito antes da proibição oficial ao cigarro. Ele se foi em 2013 e as duas unidades da cantina seguem firmes, sob o comando da mulher, Rina, e de seus herdeiros.

Em 2014, com intervalo de dias entre um e outro, a cidade perdia ainda outros dois grandes anfitriões. Mais do que isso: dois inventores de Itálias míticas, recriadas em São Paulo, e de estilos completamente diferentes. Giovanni Bruno, nascido na Campânia, personificava a cultura cantineira. O imigrante emotivo, afetuoso, um tanto faroleiro. Já Giancarlo Bolla, natural da aristocrática Costa Azzura, ajudou a implantar a restauração mais fina na cidade, criando uma verdadeira escola de serviço.

Bruno se tornou celebridade, primeiro, como garçom do Gigetto, a cantina de maior sucesso nos anos 60. Depois, com seus próprios estabelecimentos. Cativava tantos os habituês abastados como os mais boêmios e durangos. Na opinião dele, o balanço perfeito da clientela era composto entre os fregueses gastadores, muitos deles famosos, e jovens atores, músicos, com talento, charme e pouco dinheiro ­ – Bruno, frequentemente, oferecia cortesias à classe artística. Não satisfeito em criar uma atmosfera de festa interminável no salão, ele eventualmente invadia a cozinha e transgredia o cardápio oficial. Dessa forma, por exemplo, nasceu uma prato que, de legitimamente italiano, tem muito pouco: o capelete à romanesca, com presunto, ervilha, creme de leite e outros ingredientes mais. Uma receita surgida para simplesmente agradar os apetites difusos de um comensal.

Guardo na memória uma imagem de Bruno, durante uma entrevista há uns bons anos, já em seu restaurante Il Sogno di Anarello: acariciando um tomate, polindo-o vagarosamente, explicando que, ao longo de toda carreira, ele sempre fez questão de preparar a salada para seus clientes. “La insalata é a minha namorada”, explicava, com voz rouca gestos de declamador de poemas.

Giancarlo Bolla, por sua vez, seguia por outras trilhas, bem diferentes. Formado na rigorosa brigada do Ca’d’Oro, criou o La Tambouille no início nos anos 70. Antenado com a “cozinha internacional” daquele tempo, com forte influências francesas, ele paulatinamente reorientou seu norte culinário na direção da Itália. E transformou sua casa num dos mais disputados ristoranti de São Paulo. Bolla era perfeccionista, estava sempre atento a tudo, da decoração à dinâmica dos garçons. Mas dominava, como poucos, os macetes de ser, ao mesmo tempo, muito presente e muito discreto.

O La Tambouille virou endereço favorito de boa parte da elite, tanto política quanto econômica. Mas sempre tratou bem todo tipo de cliente, fosse um jovem casal comemorando alguma data especial ou algum simples curioso em sua primeira visita. A hospitalidade era especialidade de Bolla, um legado que seguiu adiante com muitos cozinheiros e maîtres formados por ele – era um revelador de bons profissionais.

Outra cena da qual não me esqueço é a de Belarmino Iglesias sentado num banquinho, perto da entrada do Baby Beef Rubaiyat da Alameda Santos (hoje, a famosa steak house é uma potência internacional, conduzida pelo herdeiro Belarmino Filho). Era dali que o fundador da rede, hoje aposentado, controlava todos os movimentos: observava a impaciência do visitante diante de uma eventual demora do prato; pedia, por sua iniciativa, um reforço de guarnição numa mesa com crianças; reparava, pelo rosto, pelos gestos, a satisfação ou não de um cliente com o ponto da carne. E resolvia tudo, geralmente antes até que as pessoas chamassem os garçons. Fazia isso já consagrado, como empresário e pecuarista.

Num universo onde muitos empreendedores iniciantes trabalham duro já sonhando com o momento em que não precisarão ir mais ao restaurante – o que, de resto, é um direito –, eu sempre penso nos decanos que citei (haveria muitos outros). E, particularmente, no banquinho do Belarmino, estrategicamente posicionado. Eles queriam, acima de tudo, cuidar bem de seus convidados. Pode soar meio nostálgico, quem sabe ultrapassado. Mas a presença e os olhos dessas grandes figuras, quase onipresentes, eram muito mais confortadores do que a onisciência automatizada das câmeras internas de segurança. Ou, pior, das câmeras dos smartphones.

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