_
_
_
_
_

Vitória do ‘Brexit’ espalha incertezas sobre o futuro da Europa

David Cameron anuncia que sairá da chefia do Governo após congresso de seu partido, em outubro

Bandeira rasgada da União Europeia em Knutsford Cheshire.
Bandeira rasgada da União Europeia em Knutsford Cheshire.Christopher Furlong (Getty Images)

O Reino Unido empreendeu nesta sexta-feira o caminho, cheio de incógnitas colossais, para seu novo lugar no mundo. A histórica decisão tomada pelos britânicos nas urnas na quinta-feira sacudirá a Europa inteira e dará alento aos movimentos que desafiam a política tradicional em todo o mundo ocidental. A sucessão de acontecimentos desatados nas horas seguintes depois da apertada vitória do Brexit (a saída britânica da UE) dá ideia da magnitude das consequências que se avizinham. Cameron anunciou que renunciará em outubro. A principal ministra escocesa disse que um novo referendo de independência da Escócia é “altamente provável”. Deputados trabalhistas iniciaram os trâmites para uma moção de censura contra Jeremy Corbyn. De pouco adiantaram os chamados à conciliação dos vitoriosos Boris Johnson e Michael Gove. O dia deixou a libra em níveis mínimos e as bolsas em vermelho. Os líderes europeus pediram um rápido processo de ruptura para superar o maior revés na história do projeto.

A primeira incógnita, a principal, foi eliminada com a comunicação do resultado oficial à primeira hora da manhã. Os britânicos, por 51,9% contra e 48,1% dos votos, tinham decidido abandonar a União Europeia. A segunda não demorou nem duas horas para ser resolvida. Diante do 10 de Downing Street, que tem sido sua residência nos últimos seis anos, David Cameron anunciou que deixará o cargo em outubro. O país, disse um primeiro-ministro que um ano antes parecia intocável, “necessita de uma liderança forte” que ele não está em condições de proporcionar. Seu legado será exatamente o contrário do que sonhou. Quem quis passar à história como o primeiro-ministro que resolveu o debate europeu e fez ressurgir a economia britânica, se vai depois de tirar o país da Europa e depositar uma bomba na economia mundial.

Mais informações
BCE e o Banco da Inglaterra socorrem o sistema financeiro após resultado
Bolsa cai, mas analistas veem efeitos positivos para o Brasil a longo prazo

A partir daí, tudo aconteceu em sequência. Nicola Sturgeon, principal ministra escocesa, se encarregou de lembrar o país que o desafio que enfrenta tem duplo caráter: não só terá de encontrar um novo lugar no mundo, mas abordar sua delicada realidade territorial; “Um novo referendo de independência na Escócia é altamente provável”, disse Sturgeon, que considerou “democraticamente inaceitável” que a Escócia seja arrastada para fora da UE contra a vontade da maioria de seus habitantes.

Os efeitos colaterais do Brexit alcançaram também a oposição trabalhista. O fracasso em mobilizar seu eleitorado tradicional foi uma das questões-chave para o desenlace. O trabalhismo não teve argumentos para responder ao medo da imigração entre as classes trabalhadoras, que o referendo revelou ser um dos conflitos sociais mais importantes do país. Em resposta ao fraco compromisso que Jeremy Corbyn exibiu na campanha, dois deputados promoveram pela tarde uma moção de censura que representa a primeira cristalização do desafio à sua liderança lançado por seus inimigos desde que assumiu as rédeas do partido, em setembro.

A Europa, por sua vez, recebe um revés seco e direto. No queixo, onde mais dói. A saída britânica da UE a condena a uma etapa de convulsões econômicas, financeiras, políticas e até legais, quando o bloco está ainda longe de recuperar-se da Grande Recessão. A UE descobre, de repente, que já não é irreversível. O desabamento da libra esterlina foi apenas um aperitivo: as turbulências nos mercados lembraram os tempos do Lehman Brothers.

A saída do Reino Unido abre uma nova era: é, de longe, o maior revés do projeto desde sua fundação há seis décadas. “O Reino Unido escolheu o caminho da instabilidade; os demais parceiros europeus não deveriam seguir essa rota”, declarou o chefe do eurogrupo (que reúne os ministros de Finanças e outras autoridades da zona do euro), o holandês Jeroen Dijsselbloem. As principais instituições — Comissão Europeia, Conselho Europeu e Parlamento Europeu — emitiram um comunicado conjunto no qual abrem aporta à saída de Londres e enfatizam a unidade dos demais membros.

Bruxelas olhava de esguelha para Berlim e Paris. De ambas as capitais chegou a mesma sensação de incerteza: “O resultado do referendo será um divisor de águas para o projeto europeu”, disse a chanceler (primeira-ministra) Angela Merkel. “Trata-se de um choque explosivo: é hora de reinventar outra Europa”, afirmou o primeiro-ministro francês, Manuel Valls. Juncker pediu a Berlim e Paris “celeridade” para deixar claro quanto antes como vai funcionar agora a União dos 27.

O equilíbrio não será fácil: nem Alemanha nem França querem concessões para o Reino Unido que estimulem o euroceticismo a escassos meses de suas eleições. Hollande e Merkel se reúnem na segunda-feira com o italiano Matteo Renzi e o presidente do Conselho, Donald Tusk, para fixarem uma posição comum na cúpula da semana que vem.

É o princípio do fim do projeto europeu?, se perguntava a imprensa britânica na sede da Comissão Europeia. “Não”, contestou, taxativo, o chefe do Executivo europeu, Jean-Claude Juncker, que pediu a Londres que “não prolongue desnecessariamente a incerteza” e comece a negociar de imediato sua saída, tendo em vista que o Executivo britânico começou a jogar com o tempo como estratégia para conseguir um acordo mais benéfico.

Nem sequer com o mel da vitória na boca Boris Johnson renunciou a contrariar seus odiados “burocratas europeus”. O ex-prefeito de Londres e estrela principal da campanha pelo Brexit disse não haver pressa em invocar o artigo 50, que abre o processo de dois anos para negociar os termos do divórcio. Com atitude grave de homem de Estado, preparando talvez o caminho para Downing Street, que agora lhe aparece mais livre, Johnson fez um chamado à calma e à conciliação. A polícia teve de protegê-lo de uma multidão que se concentrou diante de sua casa para insultá-lo.

A euforia veio com Nigel Farage. O líder antieuropeu UKIP, cuja ameaça ao partido tory levou David Cameron a convocar o referendo, quis lembrar que se não fosse por ele tudo isso nunca teria acontecido. “Atrevamo-nos a sonhar que amanhece um Reino Unido independente”, disse à primeira hora da manhã, como se levasse a vida inteira saboreando a frase.

A celebração de Farage, afastado da campanha oficial por seu potencial divisionista, era a prova de que o voto de quinta-feira foi também um voto contra as elites. A Inglaterra média desprezou nas urnas as reiteradas advertências do establishment político e econômico sobre os riscos do Brexit. A mensagem será convenientemente assimilada pelos movimentos populistas e nacionalistas que alimentam o antieuropeísmo em todo o continente.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_