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Argentina marcha contra a violência de gênero um ano depois da campanha #NiUnaMenos

Uma mulher foi assassinada a cada 30 horas nos últimos 12 meses, e 217 menores ficaram órfãos

Homenagem às vítimas da violência de gênero.
Homenagem às vítimas da violência de gênero.Ricardo Ceppi

Baleadas, apunhaladas, golpeadas, estranguladas, queimadas ou degoladas. Um total de 275 mulheres foram assassinadas por questões de gênero na Argentina nos últimos 12 meses, apesar da inédita manifestação de um ano atrás contra a violência machista. Para exigir o fim desses crimes, milhares de pessoas voltarão nesta sexta-feira a ocupar as principais praças do país com o mesmo grito: “Ni una menos”.

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A passeata de 3 de junho de 2015 marcou um ponto de inflexão na conscientização da sociedade argentina contra os feminicídios, mas eles não pararam. Em toda a Argentina, são dezenas de agressões a cada dia, um assassinato a cada 30 horas, e quatro menores órfãos de mãe por semana. “A violência de gênero não diminuiu, essa é a primeira análise", diz a presidenta do Conselho Nacional da Mulher (CNM), Fabiana Túñez.

Os dados não são oficiais. Para efeito de comparação, na Espanha, com uma população semelhante (46 milhões, contra 43 milhões na Argentina), 57 mulheres foram mortas no ano passado. Na Argentina, 286. As cifras da Espanha procedem da polícia. Na Argentina, são elaboradas pela ONG Casa do Encontro, a partir da leitura diária de 120 jornais e agências de notícias. O Governo argentino se comprometeu a realizar um registro oficial de vítimas e atualmente trabalha nisso, mas as primeiras estatísticas só sairão em 2017.

Túñez salienta que também foram adotadas várias iniciativas para aumentar a proteção às vítimas. Há, por exemplo, 25 novos refúgios para mulheres maltratadas sendo construídos, os quais se somarão aos 94 existentes em todo o país. O acompanhamento das denúncias de violência feitas pelo telefone 144 foi intensificada, e será implantado o sistema de tornozeleiras eletrônicas para condenados com comportamento violento, que receberam ordens de se afastar das suas vítimas. “Isto altera o paradigma: controla-se o agressor para que ele não possa se aproximar, não é a mulher que precisa garantir sua própria segurança”, afirma a presidenta da CNM. As medidas formam o embrião de um plano nacional de ação contra a violência de gênero, a ser apresentado em julho.

A diretora da Casa do Encontro, Ada Beatriz Rico, acredita que foram dados passos na direção correta, mas que resta um longo caminho a percorrer. Entre as dívidas pendentes está a aprovação do projeto de lei para a perda automática do pátrio poder do assassino condenado e a concessão de licença profissional a vítimas da violência de gênero. “Atualmente concedem a licença por questão psicológica ou psiquiátrica, e depois o agressor usa isso como arma nos julgamentos pela guarda dos filhos e filhas”, explica.

Mais pessimista é o diagnóstico do Ni Una Menos, coletivo de jornalistas e escritoras que impulsionou a manifestação do ano passado. “A maioria das reclamações de um ano atrás continua vigente”, diz a jornalista Ingrid Beck. “Os feminicídios são o último elo, o ponto mais trágico em uma cadeia de violências, a maioria naturalizadas”, opina. Ainda assim, acredita que, graças à mobilização de 3 de junho do ano passado, “houve mudanças de circulação de sentido, os quais não vamos ver agora”. “O que vemos é, por exemplo, que o sujeito que vai dizer uma grosseria na rua agora talvez pense duas vezes.”

As organizadoras sabem que não vão conseguir mudar a cultura machista em um dia, nem mesmo em um ano, já que ela está fortemente incrustada na sociedade argentina. Mas consideram que essa é a origem do problema, e que a mudança cultural deve ser o objetivo. Graças à passeata Ni Una Menos, o repúdio à violência de gênero penetrou não só na agenda política, mas também nos meios de comunicação, nas conversas familiares e nas escolas. Dentro de algumas horas, voltará a tomar as ruas sob o slogan "Nós nos queremos vivas”.

DE VÍTIMAS A DEFENSORAS DOS DIREITOS DE SUAS VIZINHAS

"É terrível, não desejo isso para ninguém. Se você não sofreu não consegue entender”, afirma Nilda Fernández, uma das fundadoras da rede Protege Direitos, que ajuda vítimas de violência de gênero na Villa 31, o bairro precário mais central e conhecido de Buenos Aires.

O marido de Fernández a maltratou durante anos –“era violência de todo tipo, verbal, mental, física”, detalha – até que um dia ela não aguentou mais. “Abusou de uma das minhas filhas. Quando ela me contou isso, explodi. Na primeira semana, não parava de chorar e de me perguntar como isso havia acontecido. Mas consegui dar a volta por cima, com nove filhos”, diz, com orgulho.

As biografias da boliviana Karin Llanos e da paraguaia Agustina González também estão marcadas pela violência de gênero. Mas as três, juntas com outras colegas da rede, souberam se apoiar mutuamente e agora ajudam suas vizinhas, com o auxílio da ONG Atalho e da Defensoria do Povo. “Acompanhamos a mulheres que querem fazer uma denúncia, vamos ao hospital se estiverem feridas, buscamos lugares mais seguros para ela”, explica Llanos. Ajudar às outras as faz se sentirem bem, e elas desejam estudar para futuramente poder viver deste trabalho que hoje fazem de forma desinteressada.

Embora a violência machista não respeite classes sociais, as moradoras dasvillas (favelas) costumam estar ainda mais indefesas: a maioria carece de recursos econômicos para refazer sua vida longe do cônjuge. Fernández, moradora do bairro há três décadas, observa que neste ano a situação piorou por causa da forte carestia e do desemprego. "As pessoas ficam mais irritáveis, isso gera instabilidade nos casais e tensão na rua."

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