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Opinião
Texto em que o autor defende ideias e chega a conclusões basadas na sua interpretação dos fatos e dados ao seu dispor

Uma luz para as masmorras brasileiras

Um projeto de lei pretende obrigar a polícia a levar qualquer pessoa presa em flagrante à presença de um juiz em até 24 horas após a prisão

No Brasil, as facções criminosas recebem ajuda do Governo para recrutarem novos membros. Todos os dias centenas de jovens, a maioria pobres, são levados à prisão para aguardarem julgamento por delitos menos graves. Eles são rotineiramente encarcerados com presos condenados, em flagrante violação ao direito internacional.

Muitos desses jovens que aguardam julgamento não deveriam nem mesmo estar na prisão. Eles acabam ali, no entanto, porque o Brasil não respeita o direito fundamental, consagrado no direito internacional, de um cidadão ser conduzido sem demora à presença de um juiz após sua prisão.

Um projeto de lei que deve ser votado na próxima quarta-feira na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado busca mudar isso. O projeto obriga a polícia a levar qualquer pessoa presa em flagrante à presença de um juiz em até 24 horas após a prisão. Nestas audiências de custódia, o juiz avaliará as evidências e decidirá se há razões legais para que o suspeito não aguarde julgamento em liberdade. Sem tais audiências, qualquer pessoa presa no Brasil corre o risco de passar vários meses ou até anos em uma prisão severamente superlotada, aguardando para ver um juiz pela primeira vez.

O caso de H.Y. mostra a importância destas audiências. Conhecemos H.Y. em janeiro, em Pedrinhas, um complexo penitenciário do Estado do Maranhão onde facções criminosas foram responsáveis por decapitações e outras mortes brutais nos últimos anos. Ele foi preso quando a polícia invadiu uma festa em São Luís do Maranhão após receber denúncias anônimas de que ela teria sido organizada pelo Bonde dos 40, uma dessas facções. A polícia encontrou duas armas e drogas, mas não nas mãos das pessoas presentes. Em seguida, deteve 36 rapazes e soltou as mulheres.

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H.Y., os outros detidos e os familiares que entrevistamos negaram que a festa tivesse sido organizada por uma facção criminosa. "Todos temos medo de morrer na cadeia", disse ele. H.Y. que tem 27 anos e dois filhos, também temia perder o emprego de pedreiro por estar na prisão.

Em lugares como Pedrinhas, os recém-chegados sofrem intensa pressão para se associarem a facções criminosas e assim garantirem sua própria segurança. Os jovens presos durante a festa, sabendo que a imprensa e a polícia já tinham os identificado como membros do Bonde dos 40, se sentiram obrigados a pedir que fossem colocados nas áreas dominadas por aquela facção no presídio. Eles tinham medo de acabar em um cela dominada por membros do Primeiro Comando do Maranhão (PCM), uma facção rival.

Pode-se dizer que os jovens presos na festa em São Luís tiveram sorte ao final. Um juiz envolvido no programa piloto de audiências de custódia se interessou pelo caso e os libertou quase duas semanas após sua prisão. O juiz observou que a polícia não havia oferecido nenhuma prova que os ligasse às facções criminosas, nem às armas e drogas supostamente encontradas na festa.

O Maranhão, Estado com os piores índices de violência prisional nos últimos anos, é um dos 12 Estados brasileiros que iniciaram um programa piloto de audiências de custódia. Durante as audiências, os juízes maranhenses julgaram que a manutenção da prisão não se justificava legalmente em 60% dos casos, permitindo que esses presos aguardassem o julgamento em liberdade. Por outro lado, sob os procedimentos normais, em que os juízes tomam esta decisão com base apenas nos autos de prisão da polícia e não veem os presos pessoalmente, este índice alcançava apenas 10%.

As audiências de custódia podem também ser fundamentais para combater a tortura e os maus-tratos por parte da polícia, um grave problema no Brasil, uma vez que esses abusos frequentemente ocorrem durante as primeiras horas após a prisão.

Durante uma audiência de custódia do programa piloto de São Paulo ocorrida em maio, por exemplo, P.R. e T.O., que eram suspeitos do crime de roubo, alegaram que a polícia os espancou com socos e cassetetes durante sua prisão. T.O. mancava em virtude de pancadas recebidas no joelho, segundo ele. O juiz determinou então que fossem conduzidos exames médicos imediatamente. Se eles não tivessem uma audiência de custódia, a evidência dos possíveis abusos poderia ter desaparecido.

O projeto de lei em tramitação na comissão do Senado fará com que as audiências de custódia se tornem parte integrante do processo penal em todo o Brasil, assim como já ocorre em quase todos os lugares do mundo. Essas audiências não apenas garantem um direito humano fundamental, mas também representam uma medida essencial para reformar um sistema penitenciário que é uma vergonha para o Brasil.

Maria Laura Canineu é diretora da Human Rights Watch no Brasil.

Cesar Muñoz Acebes é pesquisador sênior da Human Rights Watch no Brasil.

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