Arquivos dos EUA detalham como Pinochet encobriu o ‘caso Queimados’
Ditadura chilena queimou dois jovens em 1986 e a investigação sobre crime foi retomada
O ditador chileno Augusto Pinochet foi o principal responsável pelas manobras que encobriram um dos piores crimes do regime, conhecido como o caso Queimados, conforme indicam cinco documentos confidenciais do Governo dos Estados Unidos publicados na sexta-feira pelo National Security Archive. De acordo com a organização pesquisadora independente da Universidade de Georgetown, Pinochet em pessoa ordenou o fim das investigações para determinar a responsabilidade dos fatos ocorridos em 2 de julho de 1986, quando patrulhas militares queimaram com gasolina dois jovens que protestavam no primeiro dos dois dias da Greve Nacional contra a ditadura. O fogo provocou a morte do fotógrafo de 19 anos, Rodrigo Rojas, e as feridas graves da estudante universitária, Carmen Gloria Quintana, de 18, que sobreviveu com grande parte de seu corpo desfigurado.
Segundo explicações do responsável pela pesquisa, Peter Kornbluh, ao EL PAÍS, ainda que esses documentos já tenham sido tornados públicos há mais de uma década, adquirem especial relevância agora que a Justiça chilena recentemente reabriu o caso Queimados, 29 anos depois dos acontecimentos. “Os abundantes detalhes dos documentos públicos podem servir de apoio à acusação (...) Os documentos vinculam Pinochet ao encobrimento de um crime cuja autoria militar é certa”, disse.
A causa sofreu uma reviravolta na semana passada, depois que um ex-militar rompeu o pacto de silêncio entre os envolvidos e testemunhas. Além de detalhar fatos desconhecidos sobre o que ocorreu em 2 de julho de 1986 em um beco da região da Estação Central de Santiago, o ex-soldado Fernando Guzmán denunciou uma operação de encobrimento feita pelo Exército para que a verdade nunca fosse descoberta: “Em troca de nosso silêncio, a instituição nos deu licenças, dinheiro, como uma forma de continuar com essa mentira e nos manter calados”, disse diante dos tribunais.
Os documentos expõem detalhes de um caso crucial na história de violações dos direitos humanos no Chile
O juiz Mario Carroza, após decretar novas diligências, determinou a acusação de um grupo de doze militares reformados do Exército, pelos crimes de homicídio e tentativa de homicídio. A decisão do Poder Judicial colocou novamente os direitos humanos na primeira linha da agenda pública, como acontece de tempos em tempos no Chile. O debate foi centrado, sobretudo, na suposta informação sobre o paradeiro das vítimas da repressão e dos envolvidos nos crimes contra a humanidade ainda mantida pelas Forças Armadas. “Basta de silêncio. Existem pessoas que sabem a verdade sobre muitos casos que ainda continuam sem solução. O Chile pede que sigam o exemplo do soldado Fernando Guzmán, que ajudem a reparar tanta dor”, disse a presidenta Michelle Bachelet na segunda-feira.
De acordo com os arquivos confidenciais publicados na sexta-feira pelo National Security Archive, as manobras para ocultar os fatos começaram no hospital de emergências para onde foram levados os jovens, gravemente feridos. Em um primeiro documento norte-americano, enviado da Embaixada no Chile ao Departamento de Estado em 8 de julho, dois dias depois da morte de Rojas, está a informação de que o jovem foi “queimado de maneira deliberada por soldados”. É revelado o primeiro obstáculo dos muitos que apareceriam durante os dias seguintes, meses e até décadas para ocultar o rastro que levava aos militares. “Médicos do Posta Central (o hospital público de emergências) afirmam que o diretor do hospital obstruiu a transferência de Rojas a uma clínica melhor equipada para seu tratamento”, escreve o repórter norte-americano. O diretor médico do Posta Central, identificado como o doutor Guzmán, “escreveu uma nota no histórico médico (de Rojas) ordenando que não recebesse visitas devido aos problemas legais de seu caso e de Quintana, e que também não poderia ser transferido”, continua o documento. Essa disposição “impediu que se tomasse qualquer declaração legal” do jovem ferido, acrescenta.
Em um segundo documento, dessa vez enviado à Casa Branca com data de 14 de julho, há a advertência de que, apesar das declarações de testemunhas e uma investigação da inteligência chilena que “claramente” apontam membros do Exército como responsáveis pelo ataque aos dois jovens, “o Governo chileno, seguindo ordens de Pinochet, está tentando acusar publicamente Rojas e Quintana de terroristas, que teriam sido vítimas de seus próprios coquetéis molotov”. “Não é provável que Pinochet permita o julgamento dos soldados, nenhum investigador oficial os apontou como culpados. Se a alegação do coquetel molotov cair, deveremos esperar outras explicações, como a responsabilização de comandos comunistas”, diz o documento.
Em 22 de julho outro relato vindo de Santiago chegou ao Departamento de Estado em Washington. Com a explicação de que o relatório final dos Carabineiros conclui que a investigação “indica claramente que os membros de uma unidade militar chilena de patrulha estiveram envolvidos na queima dos dois jovens”, ainda que somente um dos responsáveis seja identificado pelo nome. O relatório foi escrito “em somente uma página sem cópias”. O diretor geral dos Carabineiros à época, Rodolfo Stange, entregou o relatório a Pinochet em 11 de julho. “O presidente Pinochet disse ao general Stange que não acreditava no relatório e se negou a receber o documento do general Stange”, descreve o documento norte-americano.
Um mês mais tarde, em 27 de agosto, a inteligência militar norte-americana afirma que o governo chileno “mudou várias vezes sua versão sobre seu envolvimento na queima e posterior morte de Rodrigo Rojas e aparentemente empreendeu uma campanha de intimidação para pressionar as testemunhas” do crime. “Alguns membros do Governo provavelmente continuarão a intimidar as testemunhas para convencê-las a mudar seu depoimento, com o objetivo de retirar do regime qualquer responsabilidade sobre o crime”, acrescenta.
O último documento publicado é de 18 de dezembro e é assinado pela CIA. Nele são citados advogados relacionados com o caso segundo os quais “o ministro da Justiça, Hugo Rosende Subiabre, está exercendo pressão sobre o promotor do Estado e os juízes para obstruir e finalmente encerrar o caso por falta de provas”. O objetivo, segundo o relatório norte-americano, é “alongar o caso”, porque enquanto não existir uma sentença os advogados de Rojas não poderão ir à Suprema Corte, que é “sua melhor oportunidade de expor os detalhes do assassinato” do jovem.
Os documentos expõem detalhes desconhecidos de “um caso crucial na história de violações de direitos humanos no Chile e, também, nas relações entre o regime de Pinochet e os EUA”, resumiu Kornbluh, para quem esse caso causou a ruptura definitiva de Washington com a ditadura chilena e o começo das pressões do presidente Ronald Reagan a favor de uma volta à democracia no país sul-americano.
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