A direita brasileira que saiu do armário não para de vender livros
Longe das universidades do país, pensamento conservador faz sucesso nas livrarias
Entre as várias faixas empunhadas pelos milhares de manifestantes que saíram às ruas contra o Governo Dilma Rousseff nas grandes manifestações deste ano, uma em particular escandalizou a intelectualidade brasileira: “Chega de doutrinação marxista. Basta de Paulo Freire”. Enquanto enchiam as redes sociais de textos em defesa do patrono da educação brasileira, que tornou-se referência mundial, professores universitários se questionavam de onde poderia ter saído uma crítica como essa. Se tivessem folheado um dos livros mais vendidos dos últimos tempos no Brasil, topariam com o seguinte questionamento: “Vocês conhecem alguém que tenha sido alfabetizado pelo método Paulo Freire? Algumas dessas raras criaturas, se é que existem, chegou a demonstrar competência em qualquer área de atividade técnica, científica, artística ou humanística? Nem precisa responder. Todo mundo já sabe que, pelo critério de ‘pelos frutos o conhecereis’, o célebre Paulo Freire é um ilustre desconhecido”.
A citação, que é seguida por uma reunião de críticas de estudiosos estrangeiros sobre a Pedagogia do Oprimido, está no artigo "Viva Paulo Freire!", parte de O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota (Record), fenômeno de vendas no país, com quase 150.000 exemplares vendidos em menos de dois anos, nas contas da editora. O livro, um dos frutos do pensamento conservador que toma as livrarias brasileiras, reúne artigos publicados em jornais e revistas nos últimos anos pelo filósofo brasileiro Olavo de Carvalho.
Em suas inúmeras postagens nas redes sociais, Carvalho mistura comentários filosóficos e críticas agressivas a petistas, feministas e "gayzistas", entre outros. “Feminista vive de polêmica... é para enganar mulher trouxa, assim como o gayzismo é feito para enganar gay trouxa”, diz em um vídeo. Morador dos Estados Unidos desde 2005 e professor de um seminário online de filosofia, o filósofo menciona entre seus feitos, em postagem recente, a “quebra da hegemonia intelectual da esquerda, com o meu livro O Imbecil Coletivo e a minha coluna no Globo, abrindo para liberais e conservadores um espaço que lhes era negado desde os anos 80 pelo menos”.
Apesar de ter publicado obras sobre a filosofia de Aristóteles e Schopenhauer, Carvalho é mais conhecido por esses vídeos e debates virtuais, nos quais interage com figuras como o deputado Jair Bolsonaro, em que critica, em meio a palavrões e insultos, aqueles que defendem políticas e condutas progressistas, com atenção especial ao Foro de São Paulo e aos defensores de governos do PT. A postura bélica, que o filósofo considera uma peneira pela qual passariam apenas aqueles dispostos a exercitar o próprio conhecimento, passou a ser replicada nas batalhas das redes sociais, muito alimentadas pelo blogueiro Felipe Moura Brasil, responsável por organizar O mínimo que você precisa saber..., o jornalista Reinaldo Azevedo e o economista Rodrigo Constantino, autor de outro bestseller, o estigmatizante Esquerda Caviar (Record), que vendeu 50.000 exemplares.
Com textos contundentes e ataques pessoais a figuras públicas das quais discordam — como no caso em que Constantino zombou do ativismo social da atriz Letícia Spiller um dia depois de ela ter sido mantida refém por assaltantes —, os arautos virtuais da direita brasileira contribuíram para a popularização de um ideário conservador que ganhou espaço num momento de desgaste do PT. A intensidade figadal com que defendem o Estado mínimo e condenam ativismos em nome de minorias assusta, contudo, a parcela formalmente educada do país, tão acostumada a conceitos consolidados como justiça social ou histórica e a divisão da sociedade entre opressores e oprimidos.
Segurança x liberdade
A guerra das redes sociais é a parte mais visível e estridente de um aumento na circulação de ideias conservadoras e libertárias pelo país, incentivada por meio de instituições liberais como o Instituto Millenium e de livros publicados nos últimos anos. Munidos de valores e conceitos opostos ao progressismo, os conservadores brasileiros travam com seus oponentes ideológicos o que o economista austríaco Friedrich Hayek definiu, na década de 1940, em seu O Caminho da Servidão, como a disputa entre os dois valores fundamentais e excludentes da direita e da esquerda: liberdade e segurança, respectivamente. Hayek, expoente da escola austríaca de economia, é um dos pensadores liberais clássicos cuja obra, disponível gratuitamente em sites como o do Instituto Ludwig von Mises Brasil, embasa muito da produção intelectual da direita liberal que inunda as livrarias do país.
Há quem veja no fenômeno de saída do armário dos direitistas uma espécie de fim de ressaca do período da ditadura militar (1964-1985), associada à direita. Há até pouco tempo, nem parlamentares do antigo PFL se diziam de direita, e ninguém no mainstream se arvorava a defender discursos que não envolvessem a palavra desigualdade. Nos últimos anos, parece ter entrado em curto circuito o consenso social que levou à Constituição de 1988, de inspiração social-democrata europeia, com o Estado e os direitos no centro do debate.
Editor de muitas das obras da onda conservadora que toma as livrarias, Carlos Andreazza, da Editora Record, faz uma leitura liberal clássica do sucesso dessa empreitada. "Havia e há uma imensa demanda reprimida, culpa dos cerca de 50 anos em que a produção editorial brasileira excluiu os pensamentos liberal e conservador de suas prensas, por que se recolocassem, com tratamento profissional, as importantíssimas ideias liberais e conservadoras nas prateleiras das livrarias". Andreazza reivindica o pioneirismo na percepção do nicho no país e diz que a Record investiu pesado para se tornar referência e líder nesse mercado.
Segundo o editor, todos os livros do gênero lançados recentemente pela Record são grandes sucessos, "com vendas consistentes e perenes, e com presença nas listas de livros mais vendidos". A editoria lançou recentemente Por trás da Máscara, do passe livre aos black blocs, sobre os protestos de junho de 2013, que já segue para a segunda edição, e Pare de Acreditar no Governo, por que os brasileiros não confiam nos políticos e amam o Estado, com 12.000 exemplares vendidos em menos de dois meses — ambos de inspiração conservadora.
Internet
Para Flavio Morgenstern (leia entrevista), autor de Por trás da Máscara, a internet e as redes sociais tiverem um papel fundamental para o renascimento do pensamento de direita no Brasil. Ele argumenta que, pelas redes, o público teve acesso aos grandes intelectuais direitistas, que haviam sido "escorraçados das universidades nacionais por pesquisadores esquerdistas". Não por acaso, autores como o próprio Morgenstern, Alexandre Borges, Gustavo Nogy e Francisco Razzo entraram no radar da Record após se destacar no ambiente virtual.
Morgenstern acredita que, no poder durante os governos Lula e Dilma, a esquerda perdeu muito do prestígio adquirido durante os anos de enfrentamento à ditadura. Prova disso é o sucesso de autores como o jornalista Guilherme Fiuza, autor do recente Não é a Mamãe, reunião de textos com críticas a Dilma Rousseff — segundo Andrezza, "tudo quanto [Fiuza] escreve vende como água no deserto". "Vejo que outras editoras voltam-se agora também para essa janela. É ótimo, pois sugere que talvez retomemos a saúde intelectual, impossível sem equilíbrio", disse o editor ao EL PAÍS.
Andreazza se refere a casas de publicação como a Edições de Rio de Janeiro, que lançou neste ano O mito do Governo Grátis, do economista Paulo Rabello de Castro, e a portuguesa Leya, responsável por publicar livros de autores como o historiador Marco Antonio Villa, especializado em criticar os governos do PT em obras como A década perdida, o filósofo Luiz Felipe Pondé e o jornalista Leandro Narloch, autor do mega-sucesso Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil, com mais de 200.000 exemplares vendidos. Já a Três Editorial, do Grupo Folha, lançou recentemente Por que Virei à Direita, escrito por Denis Rosenfield, por Pondé e pelo português João Pereira Coutinho, que também publicou pela editora As ideias conservadoras explicadas a revolucionários e reacionários.
Esses livros recuperam e divulgam obras de autores como Hayek e Ludwig von Mises, defensores das liberdades individuais diante do estatismo, e de pensadores como os norte-americanos Thomas Sowell e Eric Hoffer, que apontam os limites e contradições dos ideais progressistas, além do clássico conservador Edmund Burke. Para Bruno Garschagen, autor de Pare de acreditar no Governo, os livros chegam em boa hora, pois o Brasil passa por um momento "propício para o surgimento de intelectuais conservadores" (leia entrevista abaixo). Segundo ele, um dos benefícios é "apresentar à sociedade ideias políticas alternativas e mais adequadas ao Brasil num período histórico em que a esquerda e as demais ideologias intervencionistas dominam a nossa política formal".
Garschagen aposta que "o pensamento conservador político moderno, que não tem nada a ver com isso o que se chama de conservadorismo no Brasil quando se quer insultar políticos como Eduardo Cunha, poderá mudar a nossa cultura política", pois se baseia "na ideia de mais sociedade e menos Estado justamente porque desconfia e rejeita projetos de poder que tornam o Governo o grande agente social, político e econômico". É nisso que o escritor aposta para acabar com o que chama de política centenária do patrimonialismo nacional. "A mudança é possível e terá que vir de baixo para cima", diz. Se ele tem razão, as livrarias, mais do que as redes sociais, são o primeiro front.
"Momento é ideal para o estudo do pensamento conservador"
Desde que lançou seu Pare de Acreditar no Governo no Rio de Janeiro, no fim de maio, Bruno Garschagen já passou por outras sete cidades para apresentar seu livro, e tem agendados lançamentos em pelo menos outras 11. O autor do bestseller, que tem 12 mil exemplares vendidos em menos de dois meses, questiona na obra por que os brasileiros acreditam tanto no Estado, mesmo desconfiando dos políticos que o comandam, e fala sobre o assunto na entrevista ao EL PAÍS que segue abaixo.
Pergunta. O que lhe motivou a escrever e publicar o livro?
Resposta. A partir de 2007, quando fui fazer o mestrado em Ciência Política e Relações Internacionais no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa, em Lisboa, comecei a pensar no paradoxo que expus no título: por qual razão nós brasileiros não confiamos nos políticos e, apesar disso, desejamos, esperamos ou pedimos que o governo resolva todos ou quase todos os problemas sociais políticos e econômicos? O fato de estar fora do país ajudou-me a tentar entender essa contradição de uma forma mais adequada, mas foi somente em 2013 que essas reflexões iniciais sobre o problema foram convertidas num projeto intelectual e na pesquisa e estudo posterior que realizei para o livro.
P. Há um momento de promoção do pensamento conservador no Brasil?
R. É o momento ideal para a descoberta e estudo do pensamento conservador estrangeiro e daquele que existiu no Brasil no século XIX, quando as duas forças políticas no país eram os partidos Conservador e Liberal. Também é o momento propício para o surgimento de intelectuais conservadores e para a consolidação do trabalho dos poucos que existem e que merecem ser celebrados pelo que fizeram.
P. Por que o país se beneficiaria disso?
R. Os benefícios são muitos, a começar pelo fato de apresentar à sociedade ideias políticas alternativas e mais adequadas ao Brasil num período histórico em que a esquerda e as demais ideologias intervencionistas dominam a nossa política formal. Outro aspecto positivo é estabelecer um vínculo com a sociedade hoje inexiste pela desconfiança que temos dos políticos, que faz com que rejeitemos a política. Ao rejeitarmos a política, deixamos as decisões nas mãos de políticos em que não confiamos. E, sozinhos, os políticos com essa mentalidade intervencionista trabalham para aumentar o poder político e econômico do Estado. O pensamento conservador político moderno, que não tem nada a ver com isso o que se chama de conservadorismo no Brasil quando se quer insultar políticos como Eduardo Cunha, poderá mudar a nossa cultura política baseado na ideia de mais sociedade e menos Estado justamente porque o conservadorismo desconfia e rejeita projetos de poder que tornam o governo o grande agente social, político e econômico. O modelo ideológico e político que foi desenvolvido ao longo da nossa história, como mostro no meu livro, construiu um caminho para a servidão e creio que o pensamento político conservador poderá pavimentar um caminho para as liberdades, e não apenas a liberdade econômica.
P. Você fala no livro sobre a capacidade da elite política do país de manter a lógica patrimonialista apesar de todas as mudanças institucionais por que o país passou desde o Império. Enxerga alguma possibilidade de mudança dessa lógica agora?
R. Não apenas as elites políticas, mas as elites intelectuais e culturais que estavam comprometidas com ideologias autoritárias também se aproveitavam das outras ideologias irmãs para desenvolver um pensamento e uma prática política intervencionista singular e adaptada à realidade política brasileira que elas mesmas construíram. A crise atual é fruto da atuação do PT, que se valeu de todas as experiências intervencionistas e autoritárias anteriores e as agregou à sua própria ideologia e exercício do poder. O mais interessante do momento histórico no qual vivemos hoje é que uma parcela significativa da sociedade brasileira descobriu esse projeto de poder do PT é a armadilha estatista a qual estamos presos e que foi mantida ao longo da nossa história pela cultura política intervencionista que faz com que até hoje a maioria dos brasileiros, segundo a pesquisa que cito no livro, acredite que o Estado é o grande motor da vida social, política e econômica, mesmo sem confiar nos políticos. A mudança é possível e terá que vir de baixo para cima, ou seja, a parcela da sociedade que já descobriu a armadilha deve influenciar positivamente a outra parcela que ainda está presa e ajudar a inserir na política formal pessoas de bem comprometidas com os ideias de liberdade e devidamente conscientes dessa ótica de poder na qual o Estado não pode nem deve ser o seu próprio fiscal e guardião. Quanto mais poder o Governo tiver, mais os políticos irão exercê-lo e mais nós seremos submetidos ao Estado.
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