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Quando a escola não é 'Charlie'

Desde os atentados em Paris, ao menos 200 colégios da França já registraram incidentes

Álex Vicente
Najat Vallaud-Belkacem, ministra da Educação da França, em uma escola onde um aluno foi agredido por apoiar o 'Charlie Hebdo'.
Najat Vallaud-Belkacem, ministra da Educação da França, em uma escola onde um aluno foi agredido por apoiar o 'Charlie Hebdo'.GUILLAUME SOUVANT (AFP)

Em Noisy-le-Sec, um desses humildes municípios que rodeiam a capital francesa, a escola técnica Théodore Monod leva o nome de um grande explorador francês do século passado, especialista nos desertos e conhecido militante pacifista e pelos direitos humanos. O eco de seu legado continua ecoando hoje em dia entre as quatro paredes deste grande centro educacional de perfil “problemático”, segundo seus diretores, que acolhe 800 alunos de 45 origens diferentes.

Seus educadores estão comprometidos com a mesma causa. Voluntariamente, organizam viagens para que os alunos descubram os campos de concentração na Polônia e os memoriais do Holocausto em Israel. Os que não chegam tão longe se conformam em visitar o Instituto do Mundo Árabe e o Museu do Judaísmo em Paris. Nesta escola multicultural, a convivência é crucial.

Entretanto, depois dos atentados da semana passada contra a revista satírica Charlie Hebdo e um supermercado judaico, houve quem se negasse a respeitar o minuto de silêncio em homenagem aos mortos. Para esses alunos, a liberdade de expressão não era sagrada. Não se podia ridicularizar assim sua religião. “Foram casos minoritários, que afetaram 2 ou 3 classes em 40. Mas não se pode negar que há problemas”, admite o diretor da escola, Pierre Baudry. “Nem todos os alunos entendem que, numa República laica, temos o direito de nos expressar livremente e de criticar uma religião”, acrescenta.

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Diante do conflito, os professores tentaram argumentar com seus alunos, nem sempre com sucesso. “A maioria acaba entendendo. Outros nos ouvem e aceitam nossa lógica, mas não a compartilham. O que transmitiram a eles fora da escola a respeito da sua religião acaba vencendo”, acrescenta Baudry. Na saída, um grupo de alunas confirma que a adesão não foi unânime. “Na minha classe ninguém disse nada, mas no pátio disseram. Muitos não estavam de acordo em homenagear pessoas que insultam sua religião”, diz uma.

Este colégio é um dos 200 centros educacionais franceses onde ocorreram incidentes nos últimos 10 dias, segundo dados do Ministério da Educação. Na maioria dos casos, isso se limitou à reticência em aceitar o minuto de silêncio. Mas também houve situações mais graves. “Quarenta incidentes foram informados aos serviços de polícia e de Justiça. Em alguns casos, tratava-se de apologia do terrorismo”, disse a ministra da Educação, Najat Vallaud-Belkacem. Em outros casos, ocorreram ameaças a professores ou alunos. Em Châteauroux, três alunos do colégio Blaise-Pascal foram indiciados nesta sexta-feira por agredirem um colega que defendeu a causa do Charlie Hebdo nas redes sociais.

Vallaud-Belkacem está preparando medidas de urgência para melhorar a transmissão dos valores republicanos no contexto escolar. Depois do reflexo inicial de reforçar a segurança, a França se pergunta se o problema não estará também na escola. “Não tem problema se um aluno não gosta do Charlie Hebdo. Está no seu direito. O problema chega quando ele justifica que é normal que uma pessoa morra por causa de uma caricatura, ou que tinham razão em matá-los e que bastava não terem provocado. Isso é inaceitável, e é o que precisamos solucionar”, diz uma fonte do ministério. Vallaud-Belkacem deve divulgar as novas medidas no final da próxima semana, mas já deu algumas pistas. De saída, um melhor aprendizado dos “valores humanistas”, mas também do “fato religioso” no marco do Estado laico. “Após uma rodada de consultas, deduzimos que uma melhor compreensão das religiões pode induzir a uma maior tolerância”, diz uma fonte no ministério.

Vários alunos se negaram a respeitar o minuto de silêncio pelas vítimas

Uma nova disciplina de educação moral e cívica será implantada a partir de setembro no ensino básico e secundário. O ministério se comprometeu a estimular a formação contínua dos professores. Além disso, a ministra quer preservar “a cultura da razão e do bom senso contra as teorias da conspiração”. Segundo suas próprias palavras, “um em cada cinco estudantes acredita nas teorias de complô”.

Os sindicatos são favoráveis, embora com ressalvas. “Um punhado de escolas concentra os alunos mais pobres, sem diversidade social alguma. Não basta falar de justiça social. É preciso vê-la ao seu redor para poder entendê-la”, opina Frédérique Rolet, secretária-geral do SNES, principal entidade francesa do magistério secundarista. Para ela, os incidentes foram “excepcionais”, embora representativos de “um problema cotidiano”. “Na hora de falar dos textos fundadores da humanidade, os professores têm dificuldades para transmitir certos conteúdos, da teoria da evolução ao ensino do Corão”, acrescenta Rolet.

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