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O dia que devolveu a vida aos espectros do México

A tragédia de Iguala detonou uma fulminante reação social e marcou uma mudança de ciclo político

Jan Martínez Ahrens

O México vive seus dias no passado. Há três meses, o desaparecimento e morte de 43 estudantes de magistério parou o tempo. Se no final do verão o principal tema de debate eram as obras do futuro e resplandecente aeroporto internacional da Cidade do México, projetado por Norman Foster e paradigma do que seria a era Enrique Peña Nieto, hoje o cenário nacional está povoado de fogueiras, cadáveres e assassinos. A morte, essa velha amante da cultura mexicana, se colocou em cima do horizonte político e trouxe para o presente a memória de sua história mais cruel. As matanças de Tlatelolco, Aguas Blancas e San Fernando voltaram a desfilar diante dos olhos de milhões de pessoas e lançou no ar uma pergunta carregada de pólvora: Por que a tragédia de Iguala aconteceu?

A interrogação ameaça pulverizar tudo o que encontra no caminho. As diferentes respostas ensaiadas não conseguiram conter sua capacidade destrutiva. A simbiose do narcotráfico com a autoridade municipal, a ultraviolência de Guerrero, com uma taxa de homicídios 20 vezes superior à espanhola e um PIB per capita cinco vezes menor, a corrupção endêmica nesse estado e a rotina do crime de massa que transformaram certas regiões do México em terras endemoninhadas funcionaram como explicações necessárias, mas não suficientes para atos cuja barbárie manda pelos ares qualquer expectativa de racionalidade.

O relato oficial é conhecido. Na noite de 26 de setembro quase uma centena de alunos da Escola Normal Rural de Ayotzinapa, berço de guerrilheiros lendários como Lucio Cabañas ou Genaro Vázquez, foram para Iguala da la Independencia (130.000 habitantes) com o objetivo de arrecadar fundos para suas atividades e tomar à força alguns ônibus com os quais iriam dias depois para a Cidade do México para o aniversário da matança de Tlatelolco. Sua chegada foi notada pelos falcões do tráfico. Imediatamente alertaram o prefeito, um peão do sangrento cartel dos Guerreros Unidos. Diante da possibilidade dos normalistas estragarem um evento eleitoral de sua esposa, cérebro financeiro da organização criminosa em Iguala e próxima candidata à prefeita, o político exigiu que fossem impedidos. A ordem acabou em loucura. Com a sanha com a qual persegue os cartéis rivais, a polícia municipal cobriu a cidade de sangue. Dois estudantes morreram metralhados, outro teve o rosto esfolado e os olhos arrancados. Outras três pessoas, entre elas um rapaz de 15 anos, perderam a vida baleados ao serem confundidos com normalistas. Dezenas de estudantes foram detidos e entregues, segundo a promotoria, aos bandidos. O líder dos Guerreros Unidos, Sidronio Casarrubias Salgado, informado por seu braço-direito de que as desordens haviam sido causadas por um grupo rival, deu ordem para “defender o território”. O inferno abriu suas portas.

Como se fossem gado, os estudantes, sempre de acordo com a reconstrução oficial, foram levados para um lixão no município vizinho de Cocula. Por volta de quinze, machucados, morreram asfixiados durante a viagem. Os outros foram mortos um por um no lixão. Os bandidos declararam que fizeram uma enorme e negra fogueira com os cadáveres. Com as chamas apagadas, os restos foram colocados em sacolas de plástico pretas e lançadas em um lugar desconhecido nas águas do rio San Juan.

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Mas a fogueira que naquela noite provavelmente iluminou o rosto dos criminosos nunca chegou a acabar. Nem as mais de 70 prisões ou as abismais confissões dos supostos assassinos e a confirmação por DNA da morte de um normalista desaparecido bastaram para apagar o fogo da polêmica. A pergunta, o porquê, detonou uma reação em cadeia que se estendeu muito além de Iguala.

Em um país com 22.000 desaparecidos e 80.000 mortos pela guerra contra o narcotráfico, décadas de ceticismo emergiram com força inusitada. Não se trata somente dos pais e das organizações que os apoiam questionarem a versão oficial. O sonho de uma idade de ouro, cultivado desde 2012 com um amplo plano de reformas estruturais, se desvaneceu e em seu lugar, em meio às grandes manifestações, as ruas foram tomadas pela desconfiança para com os políticos. Nenhum partido se salvou dessa mudança de ciclo. O PRD, a esquerda, entrou em parafuso por seu apoio ao prefeito de Iguala, e até seu líder espiritual e fundador, Cuauhtémoc Cárdenas, abandonou suas fileiras.

O PRI, que durante 70 exerceu o poder hegemônico e que regressou com Enrique Peña Nieto sob a promessa de iniciar uma nova etapa, se viu nas cordas. O presidente, com índices mínimos de popularidade nas pesquisas, tentou recuperar a iniciativa com uma segunda agenda reformista. Em qualquer outro país, as medidas anunciadas, como o fim de todas as polícias municipais ou a liquidação de prefeituras corruptas, teriam causado assombro, mas no México foram recebidas com frieza. A causa vai além do ceticismo que espalhou-se entre a população. Como em uma perfeita tempestade, a crise de Iguala coincidiu tanto com a revelação das polêmicas conexões de um conhecido empreiteiro com a esposa de Peña Nieto e o todo-poderoso secretário da Fazenda, como com a vertiginosa queda do preço do petróleo justamente no momento em que esse mercado, pela primeira vez em 76 anos, abria-se para o capital estrangeiro e privado. Dois golpes que deixaram o país no escuro com seus fantasmas. Espectros que andam, mais vivos do que mortos, pelas terras do México em busca de uma resposta.

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