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500 crianças “escravizadas” são resgatadas de uma instituição no México

Cerca de seiscentas pessoas eram obrigadas a mendigar e sofriam diferentes tipos de violência na cidade de Zamora (Michoacán), segundo as autoridades. A maioria era menor de dezoito anos

Jan Martínez Ahrens
Um grupo de crianças em um dos dormitórios da instituição.
Um grupo de crianças em um dos dormitórios da instituição.AFP

O horror tinha lugar na cidade mexicana de Zamora (Michoacán). Ali, na chamada Casa de Mamãe Rosa, viviam, de acordo com a Procuradoria Geral do México, 592 pessoas em condições de confinamento e semiescravidão. Eram desde crianças abandonadas até adolescentes delinquentes, os quais a polícia libertou ontem trazendo à tona um catálogo de abusos que fariam empalidecer Charles Dickens. Os menores de dezoito anos, muitos deles deixados aos cuidados da diretora do internato, Rosa del Carmen Verduzco, de 79 anos de idade, eram obrigados a pedir esmola em casas e ruas, eram alimentados com comida em mal estado, não tinham camas para dormir e eram inclusive submetidos a humilhações sexuais. No topo dos desmandos, sempre de acordo com o relatório oficial, figura uma prática horrenda: os bebês que chegavam a nascer no albergue, todos frutos da miséria, eram registrados como filhos da fundadora, impedindo os pais de ter qualquer decisão sobre os pequenos. Este último feito foi o que causou a ação da promotoria. Pelo menos cinco progenitores apresentaram denúncia pelo sequestro de seus filhos e o que até então era apenas um rumor resultou em uma operação conjunta do Exército mexicano e da Polícia Federal no qual foi detida Verduzco, junto com oito empregados. A intervenção retirou dos muros do centro 452 menores de dezoito anos (278 meninos e 174 meninas, incluindo seis bebês), assim como 138 maiores de idade (de 18 a 40 anos). Fica no ar a pergunta de como uma instituição com centenas de internos, com convênios com entidades públicas e muito conhecida no país pôde cometer tamanho acúmulo de violências sem ninguém intervir antes.

O lar, também conhecido como A Grande Família, estava aberto desde 1947 e funcionava em regime de internato. Sua imagem pública era quase beatífica. Em suas dependências educavam-se os menores de dezoito anos sem estudo do infantil ao estudo universitário. Tudo isto mediante acordos com a Secretaria de Educação Pública. Também eram oferecidas oficinas de artes plásticas, música, costura e alvenaria. Rosa del Carmen Verduzco, conhecida como A Chefa, apresentava-se em sua página do Facebook como a “mamãe” de todos os internos, que teriam sido adotados em um gesto de amor. “Delinquentes, drogados ou crianças de rua, todos têm o sobrenome Verduzco”, é possível ler na página. “Minha vida é dedicada a educar estas crianças”, disse Verduzco em repetidas ocasiões.

O centro chegou a ser visitado pelos presidentes Vicente Fox e Felipe Calderón. Seu ginásio, inclusive, foi doado pela rainha Isabel II da Inglaterra. Bem conhecido, o albergue havia conquistado o respeito de muitos intelectuais por suprir as carências do Estado na assistência de crianças e adolescentes sem futuro. Não em vão, ao saber da intervenção policial, pensadores do naipe de Enrique Krauze pediram nas redes sociais respeito pela figura de Verduzco. Esta mulher, que passou da noite para o dia de uma venerada educadora a um ogro, tinha 60 anos de dedicação ao cuidado dos menores de dezoito anos. “Por aqui passaram milhares de crianças, pode ser que tenha ocorrido algum caso de excesso, mas não se pode jogar fora toda sua tarefa educativa”, assinala um conhecedor do internato. “É um excesso, conheço a casa desde 1979 e é uma instituição extraordinária, um milagre permanente”, indica o respeitado historiador Jean Meyer.

O relato feito pela polícia e a promotoria não deixa, entretanto, muito espaço para o debate. Na investigação, iniciada após receber as denúncias dos progenitores, os agentes foram recolhendo testemunhos que detalharam abusos de toda sorte. O procurador geral do México, Jesús Murillo Karam, recordou que uma das vítimas, por exemplo, contou como ao fazer 18 anos de idade foi impedida de recuperar a liberdade, sendo obrigada a trabalhar sem remuneração para a instituição por mais 13 anos. Esta mulher assegurou que suas duas filhas foram adotadas por Mamãe Rosa e que só podia vê-las uma vez a cada dois meses durante três horas. Em seu desespero, esta mãe ofereceu para a Chefa 10.000 pesos (1.720 reais) para recuperar as meninas. A resposta de Verduzco, sempre de acordo com o procurador, foi: “Junte o dinheiro e me ligue”.

A principal acusada, assim como os seus ajudantes, prestou declaração ontem para a Procuradoria. Duas das cinco meninas supostamente sequestradas foram recuperadas. A polícia busca outros três, ao mesmo tempo em que iniciou a tarefa de identificar os internos. Entretanto, como destacou o procurador geral, o centro começou a ser dedetizado para acabar com a infestação de ratos, percevejos e pulgas.

“Não quero esta menina, a senhora a quer?”

J.M.A

"Não quero esta menina, a senhora a quer?”. A mulher, uma mãe solteira sofrendo de um forte transtorno mental, acabava de tentar tirar a vida da criança, um bebê prematuro. Na sua frente estava Rosa del Carmen Verduzco, uma professora de educação básica, de 22 anos, que foi para o hospital avisada por um amigo sacerdote. Corria o ano de 1957 e foi então que aquela jovem voluntariosa, dedicada ao cuidado de crianças abandonadas, teve a ideia. Tomou o bebê em seus braços e foi para o Registro Civil inscrevê-lo como filho natural. No espaço para dar o nome do progenitor, colocou “pai desconhecido”. Acabava de nascer Mamãe Rosita, um personagem de múltiplas formas que causava igualmente paixões, desatava profundos rancores e suspeitas.

Ao longo dos anos, o que começou com um ato excepcional de caridade se converteu em um costume contínuo. Verduzco adotou publicamente bebês, gêmeos, trigêmeos, maiores de idade criando ao seu redor a Grande Família, um núcleo assistencial famoso em todo o México e que nunca esteve livre de polêmica. Na sua própria página da internet, reconhece-se que os menores de dezoito anos eram disciplinados “as vezes de forma ditatorial” e que desde muito jovens eram obrigados a trabalhar: “Os maiores colhiam frutas e vendiam jornais para levar algum dinheiro para casa. Às vezes não era suficiente para comer”.

Com estas bases, a entidade foi crescendo. No princípio dos anos sessenta, Mamãe Rosa já tinha sob seus cuidados 40 adotados. Foi quando comprou o terreno de 8.000 metros que constituiu o núcleo de seu primeiro lar. Para levantar aquele centro, os pequenos trabalharam duro: “As crianças de nove anos fabricavam tijolos e os de seis os carregavam”. Aquele embrião comunal, que supria as carências do Estado, foi crescendo. Em 1973 se constituiu como associação civil. Sua ligação com as redes assistências e educativas públicas de Michoacán era profunda. Presidentes, senadores, deputados e intelectuais o visitaram. Alguns, como o prestigiado historiador Enrique Krauze, escreveram sobre Verduzco, cuja tarefa educativa era elogiada por todos os agentes sociais.

“É um caso de assédio do Governo a uma vida dedicada a recolher órfãos”, assinala Krauze no twitter. Para muitos os personagens que conheceram o lar, o Governo atuou sem comedimento. “Para que o Exército era necessário, a trataram como um traficante de drogas?” perguntou-se um conhecedor do centro.

Pela Grande Família passaram 4.000 pessoas, muitas décadas e infinitas vivências. Agora pesa sobre esta atípica instituição a suspeita e uma duríssima acusação da procuradoria. Seja qual for sua resolução, o escândalo está feito.

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