_
_
_
_
_

O ‘Maracanazo’ foi uma brincadeira

A devastadora surra da Alemanha no Brasil dá ares de molecagem à afronta de 1950

José Sámano
Rio de Janeiro -
Os alemães festejam um gol diante de David Luiz e Maicon.
Os alemães festejam um gol diante de David Luiz e Maicon.Fernando Bizerra Jr. (EFE)

O futebol nunca será o mesmo depois de uma noite em Belo Horizonte na qual aconteceu o maior cataclismo desde que a bola rola, há mais de um século. Jamais houve nada igual, nem parecido. O Maracanazo foi uma brincadeira ao lado do 1-7 sofrido pelo Brasil diante de uma Alemanha que o fez morrer de uma overdose de realidade, que o deixou maculado pelo resto da vida pelo seu empenho em dar as costas a uma bola que sempre foi o maior motivo de orgulho de sua gente. O Brasil quis ser o que nunca foi e acabou por deixar todo um país em estado de choque, petrificado, com o coração sem bater.

O vivido pelo Brasil 64 anos depois do Maracanazo foi ainda mais mortificante. Um trauma para o resto da vida de tal magnitude que aquela afronta do Uruguai já não terá relevância alguma. Comparado à barafunda alemã em Belo Horizonte, resultará em um tropeço qualquer, uma molecagem, por muita liturgia que tivesse. O que aconteceu em Belo Horizonte será difícil de explicar, exigirá roteiristas de primeira e um pelotão de psicólogos, psiquiatras, sociólogos e quantos quiserem se somar a uma cátedra que promete. O ultraje da Alemanha estremeceu todo o Brasil, que esta vez tem muitos Barbosas a condenar por um cataclismo histórico, com Luiz Felipe Scolari e muitos de seus dirigentes à frente. Vai ter de ganhar muito para que em algum século futuro a torcida encontre consolo. A seleção Canarinho não perdeu uma semifinal, padeceu um calvário descomunal, uma hecatombe absoluta. Perder é outra coisa.

Faz tempo que o Brasil é infiel à bola e a Alemanha, seu novo mecenas, o fez pagar com uma sanha desconhecida na história das Copas. Uma partida perene, daquelas primordiais, e das que deixam sequelas de proporções inimagináveis. Se alguém encontra alívio no Brasil, talvez o futebol brasileiro recupere suas origens e espante de uma vez os que fumigaram sua essência para colocar-lhe uma armadura que não lhe cabia e que em nada garantia o êxito. Um desbotamento absoluto e incompreensível em uma seleção que foi mais do que qualquer outra uma ode à alegria deste jogo. O Brasil de hoje não é uma equipe com fantasia, mas uma brigada de centuriões com mais propaganda que atributos. Scolari teimou em repetir o que fez em 2002, esquecendo que Ronaldo, Ronaldinho e Rivaldo não eram precisamente uns pernas de pau. O modelo era inimitável com Fred, Jô, Hulk e uns tantos luizgustavos, jogadores coadjuvantes em uma Liga sem muito pedigree. Futebol ninguém quis jogar, apenas Neymar.

Se fosse sobre um ringue, o duelo teria sido qualificado de massacre. A combustão do Brasil —o hino como um haka maori— e todo tipo de gestos inflamados, durou o que demorou Müller para nocautear a defesa doméstica no primeiro escanteio a favor dos visitantes. Müller, que já soma cinco tentos, arrematou na entrada da pequena área, como se estivesse entre coroinhas. Ninguém lhe fez ao menos cócegas. O gol foi uma sacudida para o Brasil, mas quando Klose marcou o segundo, toda a equipe desmoronou de forma calamitosa. Dois minutos depois chegou o terceiro, de Kroos. Se seu tiro foi prodigioso, a jogada, com seis toques de violino sucessivos, foi digna de museu. A equipe de Löw era uma sinfonia.

Müller e Özil comemoram um gol em frente a Julio César.
Müller e Özil comemoram um gol em frente a Julio César.Ballesteros (EFE)

Em 20 minutos, a Alemanha executou um escárnio brutal. Kroos parecia Gerson, Khedira, imenso, era Pelé ou quem ele quisesse, e Müller era um clone de Garrincha. Os alemães tratavam a bola de forma vertiginosa, com sulcos contínuos na área de Julio César. Não havia brasileiro capaz de detectar um alemão. O conjunto germânico ganhava todas as batalhas: a técnica, a tática, a física e a anímica. O Brasil era um boneco de pano. A afronta seria maior ainda, sem remédio para um grupo de jogadores de tanga, com sua gente chorando nas arquibancadas. Não era para menos, o que acontecia no campo era cruel, só possível de acreditar se fosse com seleções como El Salvador ou a Coreia do Norte, para citar alguns dos que levaram surras mais o menos similares. Para desgraça dos brasileiros, não era ficção. Aquilo parecia a partida entre Espanha e Holanda, com uma equipe solta e a outra aturdida em um canto qualquer.

Os gols alemães aconteciam em sucessão. Kroos fez dois seguidos e à festa se juntou Khedira com todo o merecimento, um colosso, com uma agilidade técnica que não se via nele. A Alemanha estava enfeitiçada. Houve tempo para Klose, que com 36 anos destronou o último rei brasileiro. Com seus 16 gols, superou Ronaldo como o melhor goleador das Copas. A história caiu em cima do Brasil: a continuação de Ronaldo é Fred.

Mais informações
E agora?
Humilhada, a torcida desmorona
Goleada histórica em Belo Horizonte

O abuso alemão obrigava a esfregar os olhos, cinco gols nos 10 primeiros arremates. Para o Brasil, o pior pesadelo imaginável teria sido muito mais suportável. Ainda faltava o suplício do segundo tempo e ainda deve jogar pelo terceiro ou quarto lugar. Se não se tratasse de futebol, seria um caso de sadismo. Enquanto o Brasil é uma tormenta de lágrimas, a Alemanha e o mundo inteiro ainda se beliscam. Nada será igual. No futebol não há rastro de um impacto semelhante. Não há forma de medir semelhante terremoto.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_