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Fidel Castro, o último revolucionário

Após derrubar Batista, fez do confronto com os EUA a grande razão de ser da revolução. Durante 47 anos, exerceu o poder absoluto em Cuba

Fidel Castro em 1994, em Havana.Vídeo: Gerard Rancinan | EL PAÍS

Líder autoritário ou simplesmente um tirano para meia humanidade, lenda revolucionária e flagelo do “imperialismo ianque” para os mais despossuídos e para a esquerda militante, Fidel Castro era o último sobrevivente da Guerra Fria e certamente o ator político do século XX que mais manchetes de jornal acumulou ao longo de seus 47 anos de domínio absoluto em Cuba, um poder caudilhista que começou no dia 1º. de janeiro de 1959, após derrotar pelas armas o regime de Batista. Nem mesmo no ocaso de sua existência, depois que uma doença o afastou do Governo em 2006, sua influência desapareceu da ilha que sempre foi pequena demais para ele, pois Fidel a concebia como uma peça a mais no grande jogo da revolução universal, seu verdadeiro objetivo na vida.

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Ao morrer tinha 90 anos. O presidente Raúl Castro, seu irmão, anunciou o falecimento em um pronunciamento pela televisão. “Com profundo pesar compareço para informar ao nosso povo, aos amigos da nossa América e do mundo que hoje, 25 de novembro do 2016, às 10h29 da noite [1h29 de sábado, pelo horário de Brasília] faleceu o comandante em chefe da Revolução Cubana, Fidel Castro Ruz”, disse o presidente, comovido. “Em cumprimento à vontade expressa do companheiro Fidel, seus restos serão cremados nas primeiras horas de amanhã, sábado, 26. […] Até a vitória! Sempre!”

Mas depois de incontáveis mortes jornalísticas anunciadas em Miami, além de 650 atentados frustrados, incluindo planos de achocolatados com cianureto e roupas de mergulho pulverizadas pela CIA com bactérias assassinas, pode-se dizer que o falecimento real de Fidel Alejandro Castro Ruz já quase nem é notícia.

Sua biografia começa no dia 13 de agosto de 1926 no pequeno povoado de Birán, perto de Holguín, na antiga província cubana do Oriente. Foi o terceiro dos sete filhos tidos fora do casamento por Ángel Castro, um rude fazendeiro galego que chegou a Cuba como soldado de reposição no final da guerra de independência, e a cubana Lina Ruz, que trabalhava como empregada na propriedade familiar. Até se divorciar da sua primeira esposa e se casar com Lina, no início dos anos 40, Ángel não deu aos filhos o sobrenome Castro, razão pela qual até o final da adolescência Fidel carregou o estigma de ser filho bastardo. Isso não o impediu de se destacar rapidamente como um aluno arrojado e brilhante nos internatos jesuítas pelos quais passou, primeiro em Santiago de Cuba e depois em Havana, uma formação que se incrustou no núcleo duro do seu caráter.

Em 1945, começou a estudar Direito na Universidade de Havana, onde o ambiente de pistolas e efervescência política o levou a se juntar a rocambolescas aventuras revolucionárias, como a tentativa de expedição armada para derrotar o ditador dominicano Rafael Leónidas Trujillo, em 1947. Um ano depois, sendo já um proeminente líder estudantil, participou na revolta do Bogotaço, desencadeada pelo assassinato do líder liberal colombiano Jorge Eliezer Gaitán – foi sua primeira experiência de insurreição popular. Nesse mesmo ano de 1948, contraiu matrimônio com Mirta Díaz-Balart, estudante de Filosofia de uma família endinheirada, com quem teve seu primeiro filho, Fidelito.

Segundo o jornalista norte-americano Tad Szulc, autor da biografia mais rigorosa já escrita sobre Fidel, desde a sua juventude ele acreditou que havia “líderes destinados a desempenhar papéis cruciais na vida dos homens, e que ele era um deles”. Essa convicção, unida à sua intuição política e grande poder de persuasão, assim como sua audácia e capacidade de “transformar os reveses em vitórias”, o fizeram se destacar em um momento muito especial da história cubana, quando a corrupção generalizada e o descrédito do Governo de Carlos Prío Socarrás eram terreno fértil para a luta política.

Depois de se formar advogado, em 1950, e abrir um pequeno escritório, entrou integralmente para a política com o Partido Ortodoxo, que o designou candidato ao Congresso nas eleições que deveriam ser realizadas em junho de 1952. Contudo, no dia 10 de março desse ano, a história de Fidel Castro e de Cuba mudou para sempre, com o golpe de Estado encabeçado pelo ex-sargento Fulgencio Batista.

O líder cubano era o último sobrevivente da Guerra Fria

Por ter considerado fraca sua reação ao golpe, Fidel rompeu relações com a Ortodoxia e planejou uma ação armada que deveria provocar uma insurreição popular. Mas a tentativa de tomar de assalto o quartel Moncada, em Santiago de Cuba, no dia 26 de julho de 1953, acabou em fracasso e resultou na morte de 67 dos 135 integrantes do comando revolucionário, a maioria deles assassinada depois dos combates. Os rebeldes foram julgados num processo muito ruidoso, no qual Fidel assumiu sua própria defesa: com a célebre alegação conhecida como A História Me Absolverá, ele expôs seu programa político e revolucionário, que incluía em suas reivindicações a restauração da Constituição de 1940.

Fidel foi condenado a 15 anos de prisão, e seu irmão Raúl, a 13, mas os moncadistas foram anistiados em 1955, e Fidel partiu para o exílio com um grupo de fiéis seguidores. No México, onde conheceu Che Guevara, preparou o desembarque do iate Granma, que ocorreu a 2 de dezembro de 1956, na costa oriental de Cuba – uma ação que marcou o início de dois anos de luta guerrilheira na serra Maestra e que finalmente resultou na fuga de Batista, em 1º. de janeiro de 1959.

Fidel Castro, em 1966.
Fidel Castro, em 1966.

Nenhum historiador pode assegurar que Fidel era marxista quando estava nas montanhas da serra Maestra. Não há um só documento que comprove isso. Mas existem, sim, provas de que seu confronto com os Estados Unidos vem de longe. Na carta que enviou à sua colaboradora Celia Sánchez no dia 5 de junho, logo depois de aviões de Batista bombardearem a casa de um camponês com projéteis norte-americanos, ele diz: “Ao ver os mísseis que jogaram na casa de Mario, jurei que os americanos vão pagar bem caro pelo que estão fazendo. Quando esta guerra acabar, começará para mim uma guerra muito mais longa e grande: a guerra que vou lançar contra eles. Estou percebendo que esse será meu verdadeiro destino”. Para muitos analistas, essa famosa carta é crucial para compreender a psicologia e o modo de agir de Castro a partir daí.

Fidel desceu da montanha envolto na bandeira de José Martí e transformado num ídolo popular que encarnava os valores da justiça social numa nação empobrecida pela ditadura. Intelectuais de todo o mundo, encabeçados por Jean Paul Sartre, saudaram sua vitória, e aquela magia durou alguns anos, embora a revolução logo tenha se radicalizado.

Naquele momento Castro gozava de um imenso apoio popular, e sua imagem era a de um genuíno líder revolucionário, jovem, atrevido e cheio de frescor, nada que ver com os cinzentos dirigentes dos países comunistas da Europa Oriental, instalados no poder por obra e graça dos tanques soviéticos, e portanto simples marionetes do Kremlin.

Já em 17 de maio de 1959, Fidel deu início a uma reforma agrária que expropriou os grandes latifúndios produtores de açúcar, muitos deles norte-americanos, ao que se seguiu uma série de medidas de cunho social. As escolas religiosas foram nacionalizadas, houve uma campanha nacional contra o analfabetismo, e tanto a educação quanto a saúde passaram a ser gratuitas e universais. Em junho, Fidel abandonou a promessa de promover eleições livres em 18 meses (“Primeiro a revolução, depois as eleições”, disse) e empreendeu um drástico reordenamento das instituições, enquanto os fuzilamentos dos primeiros tempos da revolução eram criticados no exterior.

Fidel saiu de Sierra Maestra convertido em um ídolo popular

Seus desencontros iniciais com EUA se transformaram em ácidas tensões tão logo a espiral de medidas e contramedidas se tornou incontrolável. Washington adotou as primeiras restrições do embargo econômico e, em maio de 1960, Fidel reatou relações diplomáticas com a União Soviética, rompidas por Batista em 1952.

Não há consenso sobre se foi o líder da revolução, com sua aposta pela via socialista, quem arrastou os EUA para o enfrentamento, ou se foi a Casa Branca, com sua intolerância às medidas revolucionárias, que levou Fidel a se colocar sob a proteção de Moscou e abraçar uma ideologia que não era a bandeira original da revolução. De qualquer forma, desde o princípio a disputa com os EUA se colocou no centro da política nacional, e embora seja verdade que tal circunstância condicionou um governo cubano com a síndrome do estado de sítio, também é verdade que serviu a Fidel como justificativa para tudo.

Foi protagonista da crise dos mísseis, junto a Kennedy e Jruschov

Durante meio século, Fidel governou a ilha à base de discursos e utilizou maciçamente a televisão para conseguir se conectar com as pessoas e obter respaldo popular, um tesouro político que administrou com a mesma habilidade com que se desfez de inimigos quando mais lhe conveio e utilizou seus aliados para montar um sistema político sob medida para si, tendo o Exército e o Partido Comunista como pilares do seu poder.

Um de seus bons amigos, o prêmio Nobel colombiano Gabriel García Márquez, escreveu certa vez sobre ele que “sua devoção pela palavra” era “quase mágica”. “Três horas são para ele uma boa média para uma conversa comum. E, de três horas em três horas, os dias passam para ele como sopros”, afirmou Gabo. A descrição parece exagerada, mas não é, nem de longe. Qualquer político estrangeiro que tenha tratado com ele pode testemunhar isso, para não falarmos dos milhões cubanos, de qualquer idade, que precisaram deveram dedicar milhares ou dezenas de milhares de horas da sua vida a escutar os discursos e arengas do comandante.

Sempre concebeu a ilha como uma peça a mais na revolução universal

Sempre à frente de Cuba e protegido por um grupo de “históricos” de confiança, durante meio século Fidel foi protagonista de todos os grandes acontecimentos do país e de não poucos fatos de repercussão internacional. Em abril de 1961, comandou pessoalmente as operações militares para derrotar a invasão da baía dos Porcos, uma aventura organizada e financiada pela CIA nos tempos de Eisenhower e herdada por John Kennedy. O líder revolucionário aproveitou essa agressão para fazer o que até então não se atrevera: declarar o caráter socialista da revolução e unir ainda mais os cubanos em torno da sua figura. Um ano depois, com apenas 36 anos de idade, Castro foi o protagonista da Crise dos Mísseis, quando, em nome da fraternidade socialista, Cuba se tornou um campo semeado por foguetes soviéticos, e o mundo esteve à beira de uma guerra nuclear.

De um modo ou de outro, suas mãos e sua cabeça estiveram em tudo: no apoio às guerrilhas e movimentos rebeldes na África e América Latina; na fracassada aventura do Che Guevara na Bolívia, que foi precedida de uma incursão do revolucionário cubano-argentino no Congo; na safra açucareira dos 10 milhões, nos anos setenta, mais uma das suas estratégias voluntaristas concebidas como a salvação produtiva do país, e cujo fracasso estrepitoso o obrigou a se entregar definitivamente à União Soviética e a engolir o lodaçal burocrático do socialismo real para se sobrepor ao colapso. Fidel Castro foi também o principal responsável pela ocorrência do “quinquênio cinzento” da cultura cubana e pela introdução de inúmeras instituições copiadas da URSS; pelo êxodo do porto de Mariel, que em poucos meses de 1980 lançou ao exílio 125.000 cubanos, numa fuga vergonhosa que escandalizou o mundo e dividiu ainda mais as famílias cubanas; pelo fuzilamento do general Arnaldo Ochoa e de outros indivíduos graduados das Forças Armadas e do Ministério do Interior acusados de narcotráfico, na mais grave fratura interna ocorrida até então dentro da Revolução. Outros marcos foram a guerra de Angola, por onde passaram mais de 300.000 soldados cubanos em 15 anos; o triunfo sandinista de 1979, apadrinhado pelo líder cubano em campos de treinamento da ilha e nas casas de protocolo de Havana; a derrubada de dois aviões da organização anticastrista Hermanos al Rescate; a crise dos balseros e a lendária resistência do comandante à política de embargo econômico norte-americana, uma justificativa perfeita para quase tudo.

Castro, em uma foto de 2012.
Castro, em uma foto de 2012.

Nos anos noventa, o líder comunista sobreviveu, encastelando-se tenazmente, à debacle provocada pela desaparição do campo socialista. Foi quando proclamou seu lema de “socialismo ou morte”. Nessa mesma época, viu-se obrigado a iniciar uma tímida reforma econômica que incluiu a legalização do dólar e a abertura de espaços à iniciativa privada. Castro percebeu imediatamente que, por um lado, essas reformas seriam a salvação do regime, ainda que, por outro, corroesse a viga-mestra da revolução. A entrada dos dólares na ilha dividiu o país em dois – a parte da população que tinha acesso à moeda norte-americana, frente à parte que não tinha – e marcou um antes e um depois na Cuba de Fidel Castro, que desde 1959 tinha no igualitarismo a sua pedra filosofal.

Apesar de todas as restrições e despropósitos, a iniciativa privada foi abrindo espaço, e o número de trabalhadores autônomos cresceu constantemente, até que, superado o pior da crise, Castro deu um soco na mesa e cerceou o processo de mudanças que ele próprio havia respaldado anos antes. Assim, o século XXI começou em Cuba com uma volta ao mais estrito centralismo estatal, tanto no aspecto econômico quanto no político. Já em 2003, ele não vacilou em enviar à prisão 75 dissidentes, com penas de 6 a 28 anos, apesar da unânime condenação internacional, ao mesmo tempo em que a chegada ao poder de Hugo Chávez na Venezuela foi para ele um sopro de oxigênio econômico – o intercâmbio de petróleo por serviços de saúde tornou-se o pilar das contas cubanas na década passada, rejuvenescendo seu velho sonho de estender a revolução pelo continente. A morte precoce do líder bolivariano representou um duro golpe para ele e para seu irmão Raúl.

Entre 1975 e 1989, mandou 300.000 soldados cubanos à guerra da Angola

Após a grave doença intestinal que quase lhe custou a vida e que o tirou do exercício do poder a partir de 31 de julho de 2006, Raúl Castro assumiu a presidência do país e, posteriormente, a liderança do Partido Comunista. Iniciou-se então um processo de reformas, de aberturas políticas muito controladas, assim como a desmontagem silenciosa do sistema paternalista de serviços sociais gratuitos criado por Fidel Castro. Desde então, o líder comunista se manteve em segundo plano, escrevendo artigos sobre diversos temas e clamando contra os Estados Unidos e contra o capitalismo a partir da sua aposentadoria dourada.

Em janeiro de 2015, o Governo cubano publicou uma carta de Fidel Castro em que, sem demonstrar entusiasmo, este respaldava o degelo com os EUA promovido por seu irmão Raúl, anunciado um mês antes. Alertava, porém, para hipotéticas deslealdades de Washington durante o processo de normalização das relações diplomáticas. “Não confio na política dos Estados Unidos nem jamais troquei uma palavra com eles, sem que isto signifique, nem de longe, uma rejeição a uma solução pacífica dos conflitos ou riscos de guerra”, apontava ele num texto calculadamente ambíguo, dirigido a uma federação estudantil e republicado pelo jornal Granma, órgão oficial do Partido Comunista de Cuba (PCC).

Ditador irresponsável para muitos, último revolucionário do século XX para seus admiradores do Terceiro Mundo, fazia tempo que Fidel não participava das decisões de governo, embora, por seu caráter de símbolo, tenha influído até o último momento nos rumos políticos do regime cubano, demarcando os limites que não deveriam ser ultrapassados. Agora ele já não existe. E desta vez é de verdade.

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