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O ser flamenco de Francisco Sánchez Gómez

O próprio artista se encarregou de imprimir seu estilo em tudo o que fez: sempre soaria à sua linguagem

Capa de 'Siroco', de Paco de Lucía, de 1987.
Capa de 'Siroco', de Paco de Lucía, de 1987.

Em uma entrevista a Paco de Lucía lhe perguntaram o que era o flamenco. Como em toda resposta, o violonista pegou seu violão e tocou o conforme lá-sol-fá-mi, a conhecida escala andaluza, que caracteriza a maioria dos estilos e composições flamencas. Com o passar dos anos, sua carreira e sua inquietude artística e pessoal lhe levariam a compartilhar palcos com violonistas destacados de outras cenas, principalmente do jazz: Larry Coryell, John McLauglin, Al Di Meola... Deles e de sua disciplina lhe chamava a atenção a capacidade de improvisar, exercício que significou um calvário, e os desenvolvimentos harmônicos, ambos elementos que ele considerava potenciais enriquecedores da música flamenca e do violão. Por estas relações musicais, transgressoras para seu tempo, Paco de Lucía foi relacionado com práticas de fusão ou de fazer música não especialmente flamenca. Nada mais longe da realidade. O próprio artista se encarregou de imprimir seu estilo em tudo aquilo que fizesse: sempre soaria a flamenco. Era sua linguagem, dificilmente outra coisa poderia sair de suas mãos.

Capa de 'Fuente y caudal' de 1973.
Capa de 'Fuente y caudal' de 1973.

A formação de Paco de Lucía parte do flamenco, mas aprofunda, desenvolve e evolui sua linguagem até níveis impensáveis, definindo o violão do século XX. Mas a revolução que exerce é feita partindo de uma tradição, que conhece e assimila e à que nunca atraiçoa. Em sua família o violão era o centro da casa. Seu pai, Antonio Sánchez Pecino, sempre quis que seus filhos não sofressem as lamúrias que ele, como violonista, tinha passado e viu no instrumento um caminho profissional para seus filhos. Dos três que sairiam artistas, Paco superaria todas as expectativas. Seu toque inicial, produto de uma tremenda autodisciplina, se aproxima dos violonistas mais influentes da época, especialmente Niño Ricardo. Depois viria Sabicas, conhecido nos Estados Unidos, e seu conceito não parou de evoluir.

Capa de 'Solo quiero caminar', de 1981.
Capa de 'Solo quiero caminar', de 1981.

Depois de alguns discos com seu irmão Ramón, Paco decola em solitário na década de 70 do século passado com gravações fundamentais. Fuente y Caudal, de 1973, lha dá reconhecimento popular por meio da rumba Entre dos aguas, embora não fosse nesse tema que ele cifrou suas verdadeiras contribuições. Para estas, os especialistas costumam apontar para suas gravações dos anos 80: Castro Marín e Solo qiuero caminar (1981), Siroco (1987) e Zyryab (1990). Nelas estaria o coração dessa revolução, as novas harmonias e afinações que surpreendiam os profissionais pelo elevado nível técnico, enquanto eram consumidos pelos fãs mais profanos, singelamente porque eram composições genialmente flamencas. E todo isso o fez afundando-se na essência de sua cultura, da música flamenca à qual contribui com um assombroso desenvolvimento. Assim marcou um ponto de inflexão na valorização do instrumento e do próprio flamenco que, com sua contribuição e a de outros, adquire um conceito de música universal.

Capa de 'Siroco' de 1987.
Capa de 'Siroco' de 1987.

Paco de Lucía também revolucionou o violão flamenco em sua faceta de acompanhamento, especialmente por meio de sua associação com Camarón de la Isla. Os dois constituíram uma dupla mágica, uma sociedade única que mudaria para sempre as relações entre tocaor e cantaor (quem toca e quem canta, respectivamente). Nessa relação, Paco de Lucía indica além disso o caminho da emancipação do violonista de sua função de acompanhante do cantaor, de quem era, “escudeiro”, “herói anônimo” ou banderillero (toureiro que espeta o touro com bandeirinhas), segundo o definam Juan José Téllez, Dohn E. Pohren ou o próprio Paco, que reconhecia que quando começou a ser famoso tinha vergonha de estar ao lado de um cantaor e que lhe pedissem autógrafos “porque era o acompanhante, o banderillero”. No caminho dessa emancipação dos violonistas, com Paco abrindo o caminho, foi encomendada outra missão. Eles, seja acompanhando o canto ou o baile ou como concertistas, foram os veículos da evolução da música flamenca. Juan José Téllez já os qualificou como “intelectuais do flamenco” que “esticam os limites do conhecimento e enriquecem o indivíduo”.

Capa de 'Zyryab' de 1990.
Capa de 'Zyryab' de 1990.

O ser flamenco de Francisco Sánchez Gómez ultrapassa, além disso, os limites estritamente musicais. Ele, com sua arte e com sua atitude vital, defendeu como poucos a dignidade de sua profissão e da arte flamenca de modo geral. E não só porque naquele concerto da Exposição Universal de Sevilha se negou a tocar ao ver seu nome menor ao lado de outras figuras do cartaz. O seu foi um permanente caso de “honradez interpretativa”, como bem reconheceu o júri do Prêmio Príncipe de Astúrias quando em 2004 lhe escolheram. Por todo isso, em um dia tão triste e azarado, os fãs de flamencos se sentem tão profundamente órfãos quanto profundamente flamenco foi seu violonista.

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