ONU condena Espanha a indenizar mulher pela violência obstétrica sofrida durante o parto
O Estado deverá indenizar uma mãe que foi submetida a dez toques vaginais e a uma indução desnecessários
Mais de dez anos depois, Sandra finalmente conseguiu o reconhecimento de que o que aconteceu com ela no parto da primeira filha não foi normal, embora ainda seja habitual. Os dez toques vaginais, a indução com ocitocina e a episiotomia, entre outros procedimentos desnecessários e sem consentimento aos quais foi submetida, representaram violência obstétrica, uma forma de violência de gênero reconhecida pela ONU, “que lhe causou um trauma físico e mental duradouro”. E quando recorreu à Justiça espanhola para denunciar a violação de seus direitos, encontrou “estereótipos de gênero e discriminação”, segundo uma resolução do Comitê das Nações Unidas para a Eliminação da Discriminação contra a Mulher (CEDAW na sigla em inglês), que condenou a Espanha a indenizar esta mulher. Além disso, insta o Estado a formar profissionais de saúde e juízes para evitar essas situações e fazer estudos para dar visibilidade ao problema e orientar as políticas públicas.
“Eu sabia que estava me sentindo mal, estava tendo dificuldade para estabelecer um vínculo com o bebê e não entendia o que estava acontecendo comigo”, lembra Sandra (nome fictício para manter o anonimato) sobre seus primeiros meses após o parto. “Estava com estresse pós-traumático, tinha flashbacks do que havia acontecido comigo, ansiedade... Mas era difícil descrever porque ninguém entendia”, explica por telefone.
Em 26 de setembro de 2009, esta jurista de 43 anos foi ao Hospital Xeral-Calde, em Lugo, depois de uma gravidez sem problemas, com contrações prodrômicas ―leves e irregulares, para preparar o corpo para o parto― para receber orientação. Apesar de ainda não estar em trabalho de parto e de “não haver emergência”, foi internada e, a partir desse momento, foi submetida a “várias intervenções sem receber explicações e sem poder se manifestar a respeito”, segundo o CEDAW, que se ocupa do cumprimento do tratado que proíbe a discriminação da mulher, assinado e ratificado pela Espanha. A resolução, a primeira emitida por esse comitê sobre violência obstétrica, é vinculante e reconhece que “a atuação do pessoal de saúde não se ajustou à lex artis”, isto é, ao conjunto de práticas médicas geralmente aceitas como adequadas.
Foi levada para um quarto com outras mulheres, no qual seu marido estava proibido de entrar e onde permaneceu durante 36 horas antes de começar a dilatação, durante as quais foram realizados sete toques vaginais, com o consequente risco de infecções. Uma vez iniciada a dilatação, além de novos toques vaginais, ela recebeu ocitocina para induzir o parto, de forma não justificada, segundo a resolução. Quando foi transferida para a sala de parto, pediu para ficar erguida para dar à luz, mas isso lhe não foi permitido. “Sem explicação ou informação, a equipe de saúde cortou sua vagina com uma tesoura e extraiu sua filha usando uma ventosa”, explica o texto. Depois disso, foi separada do bebê, que tinha febre causada pela bactéria E.coli, adquirida “provavelmente devido aos toques vaginais excessivos”.
A menina permaneceu internada na unidade neonatal por sete dias. Durante esse tempo Sandra só podia ficar com ela durante 15 minutos a cada três horas. Essa separação dificultou o estabelecimento do vínculo com a filha, que “senti como uma estranha durante quase nove ou dez meses”, explica a mãe. “Precisei fazer terapia psicológica por causa do estresse pós-traumático”, lembra. E também fisioterapia para recuperar o assoalho pélvico das sequelas da episiotomia, que a impediam de manter relações sexuais durante dois anos.
Um ano depois do parto, Sandra sentiu a necessidade de denunciar o ocorrido. “Não aguentava, tinha de fazer alguma coisa”, afirma. E aqui começou um longo percurso administrativo e judicial no qual foram novamente violados seus direitos estabelecidos na Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher. Sandra começou registrando queixas respectivamente ao hospital e ao comitê de ética deste, ambas sem resposta. Mais tarde, fez uma reclamação ao Departamento de Saúde do Governo Galego, que foi indeferida. Recorreu ao Tribunal Administrativo-Contencioso número 1 de Santiago de Compostela, que considerou a reclamação improcedente. Na sentença, de 2015, o juiz conclui que “é o médico que decide realizar ou não a episiotomia depois de ver o períneo e a cabeça da menina”, e que não houve negligência, “independentemente de que o resultado para a parturiente foi inteiramente satisfatório, o que, em parte, dependerá de sua própria percepção”.
O recurso contra esta sentença também foi rejeitado. O Tribunal Superior de Justiça da Galícia concluiu que a realização da episiotomia havia sido justificada, que “a prestação do consentimento em tais condições e em pleno parto era inverossímil” e, portanto, não considerou que a lei de autonomia do paciente foi violada. Sandra entrou com um mandado de segurança no Tribunal Constitucional, que não o admitiu, considerando que o caso não tinha “especial importância constitucional”.
O CEDAW afirma em sua resolução, de 28 de fevereiro, que as autoridades administrativas e judiciais espanholas “aplicaram noções estereotipadas e, portanto, discriminatórias, ao assumir que é o médico quem decide realizar a ou não a episiotomia, ao afirmar sem fornecer explicação alguma a esse respeito, que era perfeitamente compreensível que o pai não pudesse estar presente no parto instrumental, ao assumir que as lesões psicológicas sofridas pela autora eram uma questão de mera percepção, mas que demonstraram empatia com o pai quando este declarou ter sido privado de relações sexuais coitais durante dois anos”. O comitê da ONU acrescenta que “a aplicação de estereótipos afeta o direito da mulher de ser protegida contra a violência de gênero, neste caso a violência obstétrica, e que as autoridades responsáveis pela análise da responsabilidade por tais atos devem ter especial cautela para não reproduzir estereótipos”.
Por esse motivo, resolve que a Espanha deve indenizar a mãe de forma “adequada aos danos sofridos à saúde física e psicológica”. Além disso, em uma ordem que poderia mudar a experiência ainda sofrida por muitas mulheres grávidas na Espanha, insta o Estado a “fornecer à mulher informações adequadas em cada etapa do parto e pedir seu consentimento em todos os tratamentos invasivos, exceto em situações nas quais a vida da mãe e/ou do bebê esteja em risco, respeitando a autonomia da mulher e sua capacidade de tomar decisões informadas”. Também a “realizar estudos sobre violência obstétrica no Estado que permitam dar visibilidade à situação e orientar as políticas públicas de combate a tal violência”; “oferecer capacitação profissional adequada aos trabalhadores obstétricos em matéria de direitos de saúde reprodutiva da mulher”; e “garantir o acesso a recursos eficazes” quando estes forem violados, bem como formar “o pessoal judicial e o encarregado de garantir o cumprimento da lei”. A Espanha tem um prazo de seis meses para informar o comitê sobre as medidas adotadas e também deve publicar o parecer e distribuí-lo “amplamente”. Embora tenha sido escrito na forma de recomendação, o Tribunal Supremo afirmou em uma sentença em 2018 o caráter vinculante e obrigatório de tais resoluções.
“Esta resolução nos dá uma força impressionante”, avalia Francisca Fernández Guillén, a advogada que levou o caso de Sandra ao CEDAW e membro do Observatório da Violência Obstétrica, criado pela associação El Parto es Nuestro para denunciar esses casos. “Reconhece que é algo sistêmico e estrutural na Espanha, não um caso isolado”, afirma. “Reconhece que não por estar grávida se perde o direito de tomar decisões”, enfatiza.
“É hora de acabar com a violência obstétrica. As mulheres não deveriam sofrer tratamento abusivo ou discriminatório durante o parto”, disse a vice-presidenta do CEDAW, Gladys Acosta Vargas, em um comunicado divulgado na segunda-feira, no qual espera que a Espanha “leve muito a sério” a resolução do comitê e que sua divulgação promova “mudanças substanciais nos protocolos de saúde em muitos países”.
“Nas reuniões de grupos de amamentação e nos fóruns de mães vi muitas experiências parecidas com a minha. Espero que isso sirva para alguma coisa”, diz Sandra. “Parece que abre a porta para uma mudança, para o futuro”, afirma. “Acho que é uma boa herança para a minha filha, que saiba que nem tudo vale.”
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