Unesco reconhece boas práticas da ‘Finlândia’ brasileira na educação
Órgão da ONU visitou Oeiras, no Piauí, em 2019 após reportagem do EL PAÍS mostrar as estratégias da cidade para avançar nos indicadores de aprendizagem e transformou experiência em exemplo
O que está na base de uma melhora tão expressiva na educação de uma cidade no interior do Piauí em tão pouco tempo? Foi com esta pergunta em mãos que a Unesco, órgão das Nações Unidas para Educação e Ciência, visitou Oeiras em 2019. O município de cerca de 37.000 habitantes, localizado a 280 km de Teresina, entrou no radar da instituição após uma reportagem do EL PAÍS revelar que boas práticas de gestão, alfabetização com foco em justiça social, arte na escola e até mesmo formação de pais fizeram a rede evoluir em aprendizagem rapidamente —de uma média de 3 pontos no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), em 2005, para 7,4 pontos em 2019. O índice varia de 0 a 10 e é calculado a partir dos dados sobre aprovação escolar e médias da Prova Brasil em língua portuguesa e matemática.
E com um diferencial importante: as escolas da rede municipal não têm tanta discrepância entre si, algo raro de ser encontrado no Brasil. “No último Ideb tivemos duas escolas com 8,3 e uma escola com 6,4. Nada abaixo disso. Não tivemos uma escola com 2″, explica a secretária de educação Tiana Tapety, desde 2013 à frente da rede municipal. A Unesco descobriu que esses resultados são fruto de um forte apoio político e institucional para a educação, continuidade de gestão, realização de diagnóstico inicial dos alunos, planejamento e redesenho da estrutura da rede e recursos. As respostas encontradas pelo órgão foram transformadas no relatório “Boas práticas de gestão em educação municipal: o caso de Oeiras”, lançado nesta semana.
O momento da divulgação do relatório é estratégico, uma vez que várias redes de ensino no Brasil estão voltando para as aulas presenciais pela primeira vez desde o início da pandemia. “Reverter o prejuízo, o déficit cognitivo, a catástrofe de aprendizagem [durante a pandemia] é urgente”, destacou Marlova Noleto, representante da Unesco no Brasil, durante seminário online, que discutiu o papel da gestão e das redes educacionais para garantir uma educação de qualidade. Noleto lembrou que mesmo antes da pandemia do coronavírus, uma em cada cinco crianças estava fora da escola no mundo. O vírus levou ao extremo essa desigualdade. Em seu auge, quase 1,6 bilhão de estudantes foram obrigados a deixar as salas de aula em mais de 190 países. Isso representa mais de 90% da população estudantil de todo o mundo. “Essa é a maior interrupção dos sistemas educacionais de toda a história, nem durante a I e a II Guerra Mundial tivemos uma interrupção tão grande”, afirmou.
A Unesco calcula que a pandemia vai retroceder os avanços na redução da desigualdade alcançados desde os anos 1990, por isso, é fundamental divulgar experiências consistentes de boa gestão de educação, como a de Oeiras, “que quer ser a Finlândia brasileira”, segundo Noleto. Não se trata de uma receita a ser copiada. A própria rede municipal volta à sala de aula com novos desafios além dos que já tinha antes da pandemia, como expandir instrumento de gestão democrática e participativa, “com todos os atores interagindo para a melhoria dos padrões de ensino no município” e trazer para dentro da rede os professores temporários, que hoje representam 1/3 da força de trabalho. A questão do financiamento também é um gargalo importante, segundo o relatório, sobretudo para que a cidade siga atendendo aos segmentos mais vulneráveis da população: pessoas de baixa renda, comunidades rurais, crianças e adolescentes com deficiência ainda fora da escola, adultos analfabetos e com baixa escolaridade etc.
Desafio pós-pandemia
Tapety reconhece essas dificuldades e aponta outras trazidas pela pandemia. “Tivemos perda do ritmo de ensino-aprendizagem, no sentido de contato, de monitoramento e de perda do conhecimento. Temos alunos que deixaram a sala de aula crianças e voltam hoje adolescentes”, diz. A rede iniciou suas aulas presenciais nesta semana, após um ano e cinco meses de ausência da escola. Tapety conta que estranhou o silêncio sepulcral dos alunos ao entrarem na escola. “Dava para sentir a tensão, os meninos apáticos, com medo”, disse em conversa por telefone.
A meta para o retorno às aulas presencial é ambiciosa: não deixar nenhum aluno para trás e recuperar a aprendizagem de todos, priorizando as habilidades essenciais ―tanto cognitivas (que são aprendidas, como memorização e a análise) quanto socioemocionais (que compõem o conceito de inteligência emocional, como empatia e paciência). Oeiras lançou um plano de retorno escalonado até o final de outubro. Neste primeiro momento, a estratégia é voltar com os núcleos de cultura e abrir as escolas para arte e acolhimento aos alunos. Da rede de 6.000 alunos, apenas 400 voltaram nesta semana.
A reabertura acontece num momento em que o vírus arrefeceu na cidade. São poucas contaminações, duas ou três por dia por dia, não há fila na UTI e nenhum registro de mortes há uma semana. A maioria dos professores, no entanto, só tomou a primeira dose da vacina, o que limita um plano de abertura mais audacioso. “Aqui exercitamos a paciência, o município não ficou tentando voltar a qualquer custo”, diz Tapety. Ela comemora o fato de a rede não ter perdido nenhum estudante ou profissional para a covid-19. “Mas tivemos infecções entre os coordenadores e diretores que permaneceram na escola. E perdemos familiares, pais de alunos, amigos. Foram cerca de 70 óbitos no município”, lamenta.
Investimento em tecnologia
A secretária lembra que essa retomada “é diferente de tudo o que já se fez na educação no Brasil”. “Penso nos municípios que já vinham sem uma política sólida, terão de começar do nada porque nós estamos suando a camisa”, afirma. O que não significa que o período de crise foi perdido. Tapety diz que a rede que volta para o presencial não é a mesma de 2020. A pandemia foi momento de investimentos. “Não paramos, só em abril de 2020 para planejar”, conta.
A rede municipal ganhou expertise em ter tecnologia agregada ao ensino. “O aluno virá para o presencial num turno e seguirá à distância em outro”, diz a secretária. Até dezembro a meta é voltar com 50% das aulas de português e matemática no presencial. Serão 200 horas letivas presenciais e 600 horas não-presenciais, por meio dos cadernos de atividade, distribuídos a cada 45 dias para os alunos —“o meio mais democrático de chegar a todos”, diz Tapety. Além disso, o município ainda conta com quatro horas de programas de rádio de segunda à sábado e podcasts, que são distribuídos via celular para os estudantes. Neste momento, Oeiras acaba de receber equipamentos para montar seu próprio estúdio para a produção de programas de rádio, podcast e videoaula. “Tenho profissionais que já defendem que quatro horas na rádio não é suficiente, precisamos de uma rádio inteira só para educação”, diz.
Pelas ondas da rádio, a cidade conseguiu manter um contato diário com os alunos e seus familiares, mas também adquiriu uma plataforma de educação, que conta com cerca de 20.000 acessos por mês. Oeiras também investiu em tablets para dar um upgrade nos diários de classe de papel, que passaram para o online. “Agora estamos operando na nuvem”, comemora a secretária. A maioria dos estudantes, no entanto, não tem acesso à internet de qualidade. Apenas 8% têm internet fixa em casa e 70% contam com internet móvel, mas sem capacidade para baixar a plataforma de ensino. Mesmo entre os professores, 20% não têm estrutura adequada em casa. “São profissionais da zona rural, que têm vida precária, investir em tecnologia não é prioridade”, explica.
Em março deste ano, o presidente Jair Bolsonaro vetou integralmente o projeto de lei da Câmara dos Deputados que previa ajuda financeira de 3,5 bilhões da União para Estados e municípios garantirem acesso à internet para alunos e professores das redes públicas de ensino. No entanto, a secretária afirma que os recursos que foram enviados pelo Governo federal para investimento em tecnologia, foram muito bem aproveitados. “Tivemos escola que recebeu 800 reais, outras 1.000 reais, dependendo do número de alunos. Não deu para colocar todos os alunos na rede, mas deu para investir em laboratório e garantir que todas as escolas estejam conectadas”, diz. O desafio para o futuro é garantir um orçamento para aparelhar adequadamente professores e alunos.
Mas, enquanto isso, Tapety já planeja a primeira avaliação diagnóstica presencial, de 30 de agosto até 10 de setembro, para saber como ficou a aprendizagem no período de ensino a distância. A uso da tecnologia agora será recorrente, mas o olho no olho continua sendo fundamental para que os estudantes recuperem o tempo perdido.
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