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Mary ‘Tifoide’, a mulher que matou três pessoas sem sair da cozinha

Imigrante irlandesa entrou para a história da medicina como caso mais famoso de transmissora ‘supercontagiante’ da febre tifoide ao infectar 53 membros da alta sociedade com sorvetes artesanais

Ilustração alusiva a Mary Mallon na edição de 20 junho de 1909 do jornal ‘The New York American’.
Ilustração alusiva a Mary Mallon na edição de 20 junho de 1909 do jornal ‘The New York American’.

Em 11 de novembro de 1938, uma mulher de 69 anos morreu no hospital-asilo Riverside, na ilha North Brother, em Nova York. Chamava-se Mary Mallon. Tinha passado 23 anos trancada ali e, apelidada Mary Tifoide pela imprensa da época, tinha escrito a contragosto uma página na história da medicina: tornou-se a mais famosa transmissora supercontagiante de uma doença.

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Mary nascera em 1869 em Cookstown (Irlanda), quando ainda soavam os ecos da grande fome que, provocada pela Inglaterra, tinha assolado o país entre 1845 e 1850. Cerca de 500.000 irlandeses morreram, e um milhão de outros emigraram, especialmente para a América do Norte. Inculta e pobre, com 15 anos, em 1883, Mary partiu para os Estados Unidos para trabalhar como faxineira. Aprendeu a cozinhar e em 1900 era cozinheira de uma família rica numa localidade próxima a Nova York. Curiosamente, duas semanas depois de sua contratação, os oito membros da família adoeceram por febre tifoide, e o mesmo ocorreu em 1901 quando trabalhava em Manhattan. Em agosto de 1906 começou a trabalhar na residência que um banqueiro tinha alugado na seleta Long Island. No final daquele mês, uma de suas filhas sofreu a mesma enfermidade, e dias depois outras seis pessoas, entre membros da família e empregados, foram hospitalizados pela mesma causa.

Surpreendia que um mal próprio de zonas miseráveis assolasse uma família rica, e é provável que o número de casos na alta sociedade teria continuado a aumentar se não fosse porque o dono da mansão, temendo não poder voltar a alugá-la, contratou George Soper, um engenheiro especializado em instalações sanitárias. Este examinou a casa exaustivamente, sem encontrar nada suspeito, mas lhe chamou a atenção que a cozinheira tivesse deixado o emprego.

Nas agências de colocação, solicitou informações sobre onde tinha trabalhado antes. Observou que em seis bairros seletos de Nova York, entre 1901 e 1906, haviam ocorrido 22 casos de febre tifoide, que uma menina havia morrido por esse motivo, e que a cozinheira era o denominador comum. Soube que se chamava Mary Mallon e que sua especialidade era fazer sorvetes com pêssegos picados à mão. Conhecedor do papel da sujeira na transmissão de certas doenças infecciosas, pensou que a razão do contágio podia estar naquela mulher. Sobretudo quando leu numa publicação europeia que havia portadores assintomáticos do germe dessa doença.

A cozinheira se negou a colaborar, de maneira que Soper solicitou a colaboração do Departamento de Saúde. Foi levada à força para um hospital e, no consultório, negou energicamente ter estado doente, atacou um médico com um garfo, socou um policial desprevenido e escapou. Encontraram-na escondida no armário de um domicílio próximo. Uma vez dominada, mostrou-se aterrorizada e obcecada por manter sua integridade. Por fim, bactérias Salmonella typhi foram encontradas nas suas fezes.

Não se sabe se alguém se deu ao trabalho de informar com calma àquela irlandesa sozinha, católica e pobre, sobre como a febre tifoide era transmitida, mas é provável que não entendesse, dado que em sua defesa alegou: “Sou inocente. Não cometi nenhum crime... É injusto. Parece incrível que uma mulher indefesa possa ser tratada assim em uma comunidade cristã. Por que me desterram como uma leprosa?”. O fato é que em 1907 foi confinada no hospital Riverside, sendo liberada em 1910 com a condição de que não voltasse a trabalhar como cozinheira.

Entretanto, em janeiro de 1915 houve um surto de febre tifoide no na Maternidade Sloane, em Manhattan. Adoeceram 25 pessoas, e duas morreram. A investigação descobriu que uma das cozinheiras, Mary Brown, era na verdade Mary Mallon. Fugiu, mas a polícia a encontrou e foi enviada novamente ao Riverside, onde permaneceu até sua morte, em 1938. Em 23 anos, com o único consolo de sua religião, não recebeu nenhuma visita. Não se fez autópsia no seu cadáver, que foi enterrado no cemitério católico de Saint Raymond, no Bronx. Hoje se assume que Mary infectou 53 pessoas e causou a morte de três delas.

George Soper, um engenheiro especializado em instalações sanitárias, examinou a casa exaustivamente, sem encontrar nada suspeito, mas chamou sua atenção que a cozinheira tivesse deixado o emprego

A febre tifoide —não confundir com o tifo exantemático e outras doenças que causam febre e confusão— é uma enfermidade infectocontagiosa provocada pela bactéria Salmonella typhi. É transmitida exclusivamente entre pessoas, sobretudo por via fecal-oral, através de água ou de alimentos contaminados com as fezes dos indivíduos infectados. Em zonas endêmicas, geralmente com higiene precária, costuma ser veiculada mais pela água que pela comida, ao passo que em países desenvolvidos o mais comum é o contágio por alimentos contaminados durante sua preparação por portadores assintomáticos. As moscas podem favorecer o transporte das bactérias das fezes para os alimentos, mas também ocorre em mariscos cultivados perto de portos, especialmente se nos arredores há tubulações despejando águas fecais. Do mesmo modo, é possível a transmissão anal-oral em relações sexuais.

Cerca de 25 milhões de novos contágios ocorrem por ano, dos quais cerca de 300.000, sobretudo crianças, morrem por falta de tratamento. Atualmente dispomos de vacinas e fármacos eficazes. Cinco por cento dos pacientes não tratados podem se tornar portadores assintomáticos, quando a bactéria fica entrincheirada na vesícula biliar, em especial se contiver cálculos, vertendo-a contínua ou intermitentemente para o intestino e as fezes durante meses ou mesmo décadas, como era o caso de Mary Mallon.

Na Espanha, é indicada a vacinação a viajantes a zonas endêmicas (o que não exclui evitar frutas e hortaliças cruas, águas duvidosas, incluindo pedrinhas de gelo e alimentos a temperatura ambiente) a funcionários de laboratórios de microbiologia e a pessoas em contato com portadores documentados da bactéria. É provável que Mary Mallon portasse cronicamente a Salmonella typhi em sua vesícula biliar. Nunca se saberá se recebeu informação adequada sobre como a transmitia e, sobretudo, se a entendeu. Será que seu medo e sua ignorância permitiriam?

Laura Prieto Pérez e Miguel Górgolas Hernández-Mora integram a Divisão de Doenças Infecciosas da Fundação Jiménez Díaz, da Espanha.

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