Nelson Freire, uma questão de elegância
Elegância sempre foi vista como a proporção de quem pode fazer muito com pouco, assim como a leveza e facilidade dos movimentos. O toque único de Nelson Freire tinha exatamente essas qualidades
Em 1839, Chopin escreveu três curtas peças que apareceriam no ano seguinte em um método de piano com o nome de “Método dos métodos”, de Moschelles e Fétis. São peças que não duram mais do que duas páginas de partitura e passaram a posteridade como sendo os “Três estudos póstumos”. Costuma-se dizer que elas não teriam as dificuldades técnicas e exigências de virtuose de alguns dos estudos presentes nos dois livros anteriores, catalogados como opus 10 e opus 25. No entanto, a primeira dessas peças tem uma característica singular que produz uma dificuldade real para sua interpretação. Há muitas interpretações feitas, entre outros, pelos pianistas mais paradigmáticos que conhecemos (AlfredCortot, Arthur Rubinstein, Claudio Arrau, Samson François, Sviatoslav Richter), assim como várias interpretações de pianistas contemporâneos. Mas nem todas são igualmente bem sucedidas em dar forma musical aquilo que faz desse estudo um evento tão singular. E dentre essas, há uma interpretação que realiza a ideia musical do Estudo como nenhuma outra.
Antes de Chopin, os Estudos para piano eram exercícios para o desenvolvimento da habilidade técnica do pianista. Todo estudante ainda hoje se depara com tal literatura que estava disponível na época de Chopin: Czerny, Cramer, Clementi. Esses são apenas alguns dos nomes que vem à mente quando se trata de pensar na disciplina que um pianista deve internalizar para saber como se expressar musicalmente. O termo “disciplina” não está aqui por acaso, pois se trata de criar disposições corporais para dar forma a um legato, a uma intensidade fortíssima, como abrir e fechar os braços para encontrar o peso adequado de um arpeggio, como usar a força distinta de cada dedo para criar a coloratura expressiva da interpretação. Podemos não saber se uma indicação de pianíssimo em uma partitura indica ternura, solidão, tristeza ou quietude contemplativa, mas sabemos quais gestos corporais são necessários para o pianíssimo aparecer. Sei como meu corpo deve estar, de que parte do corpo deve vir o peso do toque. Neste sentido, a técnica pianística impõe claramente a construção de um corpo expressivo a partir da internalização de um sistema complexo de tempos, de gestos e de movimentos. O que não deixa de ter sua ironia: a sensibilidade musical é fruto de uma disciplina corporal, os sentimentos musicais estão enraizados nos gestos corporais.
Nesse sentido, não será uma das menores genialidades de Chopin ter transformado exercícios de desenvolvimento da técnica em música para concerto. Foi apenas com ele que os Estudos para piano se tornaram um gênero musical. Depois de Chopin, vieram vários outros (Liszt, Debussy, Scriabin) e até hoje forma-Estudo aparece a compositores como um gênero vivo, haja vista os Estudos de contemporâneos como Ligeti, Dusapin ou Glass.
No entanto, há de se lembrar como uma das condições para Chopin fazer de meros exercícios um verdadeiro gênero musical foi entender que corpo é construído, na verdade por ímpeto, por impulso, por desequilíbrio, por multiplicação. Suas peças têm, em muitos casos, a capacidade de confrontar o corpo com seus limites, em alguns casos, fazê-lo procurar a exaustão, em outros recuperar o peso diferenciado dos dedos para que os toques extraíssem camadas de sonoridade até então indiferenciadas. Isso a ponto de um pianista e teórico, Charles Rosen, ver-se obrigado a dizer: “nos Estudos de Chopin, o momento de maior tensão emocional é geralmente aquele que a mão é alongada da maneira mais dolorosa, de maneira que a sensação muscular se transforme – mesmo sem o som – em uma mimesis da paixão”.
Mas havíamos começado falando de um estudo específico, esse que abriria a sequência dos últimos três estudos compostos por Chopin. E havíamos falado de uma interpretação específica.
Esse estudo deve ser especificado porque sua ideia de base é um problema que não poderia deixar de nos interrogar de diversas formas. Ele poderia ser descrito da seguinte maneira : “como fazer o mesmo corpo habitar, simultaneamente, dois tempos diferentes”, como deixá-lo ser atravessado pela simultaneidade de dois tempos. Scott Fitzgerald escreveu um dia: “o teste de uma inteligência superior é a capacidade de manter duas ideias opostas na mente ao mesmo tempo e ainda conservar a capacidade de funcionar”. Para conseguir tocar bem esse Estudo é necessário manter duas ideias opostas na mente e continuar funcionando.
Notemos, por exemplo, como essa peça de Chopin é construída a partir de uma dupla estrutura simultânea. Os quatro primeiros compassos apresentam uma divisão do tempo 2/2 em duas tercinas de semínima a serem tocadas pela mão direita. Os quatro compassos seguintes levam a mão esquerda a se acostumar à divisão do mesmo tempo em oito colcheias. Do nono compasso em diante, toda a peça será a sobreposição entre o tempo de seis semínimas da mão direita e o tempo de oito colcheias da mão esquerda.
Ou seja, a mão esquerda “conta” o tempo em dois grupos de três, a mão direita “conta” em dois grupos de quatro, como se houvesse duas formas de cortar o mesmo espaço que se desdobram simultaneamente. Tanto é assim que, com uma única exceção, a peça toda é composta com notas do mesmo valor, como se fosse o caso de produzir uma continuidade temporal em forma de fluxo. Com isto, a peça consegue criar uma espécie de equilíbrio sob o fundo de desequilíbrio. Como se a função determinante do Estudo fosse levar o intérprete a viver em dissociação, sem com isto perder a capacidade de produzir a impressão de se estar no interior de uma duração. Uma duração sob o fundo de dissociação, na qual é impossível contar, pois há duas contas sendo feitas simultaneamente.
Esse problema musical, vinculado ao uso da poliritmia, foi interpretado de várias formas. Há interpretes que darão um andamento acelerado à peça reforçando a melodia da mão direita, como se tentassem apagar a dissociação. Há aqueles, como Alfred Cortot, que acharão por bem destacar as dinâmicas internas das frases melódicas, sublinhando suas intonações através de rubatos e todo um sistema de pequenos atrasos e acelerações. Claudio Arrau chegará a fortalecer a expressão acelerando e desacelerando o tempo. Outros, como Samson François, irão privilegiar um toque homogêneo. Haverá ainda os que fortalecerão em demasia os crescendo e os contrastes, colocando muitas vezes na mão esquerda no nível da mão direita.
Mas há duas que são absolutamente geniais, por razões distintas. A primeira é de Arthur Rubinstein pela sua capacidade de, ao mesmo tempo, preservar a regularidade e ouvir as intonações, de não crescer nos ostinatos mas a fim de, paradoxalmente, trabalhar a intensidade, criando assim uma repetição que parece lutar contra seu próprio desfalecimento.
A outra interpretação genial nos foi deixada por Nelson Freire, pela sua definição em ato do que significa elegância. Ela recusou todas as saídas pela intensificação dos meios sem efetivamente se privar de nenhum. Há rubatos, mas eles são contidos, há o desenho claro das frases e entonações, mas eles também são contidos. Há a segurança de apresentar a frases em sua clareza, mesmo sabendo que a mão esquerda não está servindo de acompanhamento, pois está a insistir em outro tempo. Recusando todas as outras saídas, ela parece simplesmente encontrar a interpretação “a mais natural”.
Elegância sempre foi vista como a proporção de quem pode fazer muito com pouco, assim como a leveza e facilidade dos movimentos. O toque único de Nelson Freire tinha exatamente essas qualidades. Pois isso, ele parecia se afirmar sem precisar fazer esforço para ser notado. Ele lembra um país que em certo momento acreditou na força de não ter que mostrar força para fazer ouvir uma singularidade. Essa era uma pequena homenagem não apenas a um pianista, mas a alguém que representava toda uma maneira de fazer música.
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