Uma jornada pela floresta e pela história de Rita Piripkura
“Vão matar eles dois. Se matar, daí não tem mais”: o apelo pela sobrevivência de um povo indígena isolado, legalmente protegido de invasores por norma que está prestes a expirar
“Vamos. Quero te mostrar uma coisa.” Rita me disse quando estávamos sentados na beira de um igarapé no limite da Terra Indígena Piripkura, no Mato Grosso.
E iniciamos a caminhada: Rita, o marido dela, chamado Aripan, quatro agentes de proteção territorial da Funai e eu.
Nós andamos e andamos. Navegamos pelas raízes das árvores, cruzando igarapés, cortando galhos para abrir caminho, admirando os cipós e a floresta cada vez mais densa. Uma floresta que testemunhou muitas gerações de cuidado especializado por seus protetores indígenas, mas também décadas de crimes terríveis contra esses guardiões da natureza.
Por vezes caminhávamos em ziguezague e em outras, em linhas retas. Rita sabia exatamente para onde estava indo. “Aqui é Piripkura. Aqui é a minha terra”, disse a Rita. “Minha mãe e eu morávamos aqui, nessa terra. Eu, minha irmã, meu pai, minha mãe, meu irmão...”.
Rita me perguntou se eu já havia visto certos tipos de cascas de árvore e se eu já tinha ouvido falar do peixe bodó que se abriga em buracos nos leitos de águas rasas. Sua sabedoria acurada do que poderia ser desconhecido para outras pessoas, apesar de ser tão familiar para ela, era resultado da saída dela para além desta floresta onde nasceu.
Quando Rita nasceu, seu povo, os Piripkura, eram indígenas isolados. Eles evitavam contato com pessoas de fora e aproveitavam tudo o que sua floresta oferecia: pescavam, caçavam, coletavam frutas e mel, e dormiam em tapiris, abrigos feitos de fibras de plantas.
Mas sua terra já estava sendo invadida há décadas: no final dos anos 1800, os seringueiros da região “caçaram” os Piripkura e a partir dos anos 1940 madeireiros e grileiros passaram a invadir a região. Eles levaram suas armas de fogo e toda sua ganância pelas riquezas da floresta, mudando a vida dos Piripkura para sempre e quase os aniquilando completamente.
“Os brancos chegaram, cortaram [a floresta] aqui ó. Minha avó falou para mim: foi um branco que cortou. Eles derrubaram muita madeira lá. Aí eu parei de caçar lá em cima.”
Para os invasores, os Piripkura eram um obstáculo inconveniente. Por isso, atacavam e atiravam constantemente neles. “Os brancos chegam lá de madrugada”, Rita me falou ao relembrar um dos vários ataques. “Eles mataram nove dos meus parentes.”
Para escapar desses ataques, os Piripkura foram forçados a viver fugindo. “Mataram, aí vamos embora, para lá, para o outro lado. Aí vem para cá, aí tira um jatobá [árvore] lá em cima para fazer uma canoa. [Era] madrugada, né. De manhã, bem escuro. Muito pium [mosquito], é vento, é rio grande.” Rita apontava para o norte, sul, leste e oeste, para ilustrar os constantes deslocamentos dos Piripkura —sua estratégia de sobrevivência.
Neste contexto de invasões à terra dos Piripkura, Rita acabou tendo contato com pessoas não indígenas e foi levada para uma fazenda local, onde foi forçada a trabalhar. Anos depois, após ser libertada, ela se casou com seu atual marido, Aripan, do povo indígena Karipuna. Ela é a única indígena Piripkura com contato regular com pessoas não indígenas.
Mas dois de seus parentes que sobreviveram a série de ataques permanecem isolados na floresta: “É meu irmão [Baita] que está aí [na floresta], e o outro, Tamandua, que é meu sobrinho.” Além de Baita e Tamandua, acredita-se que existam outros sobreviventes Piripkura vivendo nas partes mais densas da floresta.
Nós continuamos andando até chegamos ao nosso destino. Rita então nos mostrou um tapiri abandonado que havia sido construído por Baita e Tamandua —aquele local havia sido o acampamento temporário deles há muito tempo, antes de se mudarem para o outro lado da floresta. Com muito orgulho, ela nos mostrou onde teriam feito o fogo para cozinhar e se aquecer à noite e onde teriam dormido. Rita queria que víssemos esta prova da existência de seus parentes para que pudéssemos mostrar a pessoas em todo o mundo. Isso iria intensificar seu apelo pela sobrevivência de seu povo.
Os indígenas isolados são os povos mais vulneráveis do planeta. Quando suas terras são protegidas, eles prosperam, mas sem sua floresta intacta eles não podem sobreviver. A Constituição e a lei internacional dizem que as terras de indígenas isolados devem ser oficialmente mapeadas e protegidas, mas a demarcação do território Piripkura foi paralisada por pressão política e por interesses de poderosos fazendeiros.
Atualmente, existe uma portaria de restrição para proteger legalmente esse território. Ela torna ilegal a entrada de invasores e é um instrumento fundamental para salvaguardar essa terra e seu povo até que o processo de demarcação seja finalizado. Sem essa proteção, os Piripkura podem ser dizimados.
Mas não é suficiente. A pressão sob o território dos Piripkura está cada vez maior: encorajados pela retórica racista e políticas genocidas do presidente Bolsonaro para tentar abrir os territórios de povos indígenas isolados, os madeireiros estão invadindo impunemente. Imagens de satélite mostram que, em 2020, a floresta dos Piripkura foi a mais desmatada entre as terras com presença de indígenas isolados.
E a portaria de restrição de uso vai expirar em alguns dias, em 18 de setembro. Políticos e fazendeiros anti-indígenas estão pressionando para que a portaria não seja renovada e para assim terem amplo acesso à exploração do território.
Seis outras terras de povos indígenas isolados estão legalmente protegidas por portarias semelhantes e, no total, cobrem um milhão de hectares da floresta amazônica. As portarias dos territórios indígenas Jacareúba/Katawixi (AM), Ituna Itatá (PA) e Pirititi (RR) vão expirar nos próximos meses.
Rita conhece bem os impactos catastróficos causados pela invasão dos territórios de povos indígenas isolados. Refletindo sobre a situação de seus parentes com uma combinação de angústia e um compromisso inabalável de ajudá-los a sobreviver, ela disse: “Tem muita gente aqui, andando. Vão matar eles dois. Se matar, daí não tem mais.”
As palavras urgentes de Rita devem ser ecoadas em todo o Brasil e no mundo. A pressão nacional e internacional sobre o Governo brasileiro para proteger de fato essas florestas tem grande chance de funcionar. Se nada for feito, inúmeros povos indígenas isolados poderão ser dizimados. Por favor, junte-se à luta de Rita —pelos Piripkura, pelos povos indígenas isolados e por toda a humanidade.
Sarah Shenker é ativista da Survival International, o movimento global pelos povos indígenas.
O apelo da Rita pode ser visto no vídeo abaixo.
Junte-se a campanha global que pede pela renovação das portarias de restrição de uso, a expulsão de todos os invasores e a demarcação dos territórios dos povos indígenas isolados. Assine a petição: https://isoladosoudizimados.org/ . Envie um email: svlint.org/AssinaFUNAI. E acompanhe mais ações e atualizações da campanha nas redes sociais: #IsoladosOuDizimados, #AssinaFUNAI
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