Brasil ‘afunda’ nas mortes pela covid-19, enquanto o comandante fala “e daí”
Liderança não é apenas sobre o líder, mas também sobre a criação de um senso de identidade social compartilhada. Algo que a primeira-ministra da Nova Zelândia fez com muita sabedoria. Bolsonaro vai na contramão
O ano novo chegou e com ele a esperança de vacinas após um ano de esforço conjunto entre pesquisadores e laboratórios do mundo todo. No momento em que todas as lideranças mundiais viabilizam calendários vacinais, nosso líder comemora o ano novo, mas não fala em vacinas. E repete, “somos referência no combate ao vírus”. Aqui jaz o país com uma das maiores taxas de mortes comparada ao total da população, com desemprego recorde e PIB em queda livre. Aqui jaz o país que tem um líder que diante desse cenário trágico ainda diz: “e daí?”. E o mês de janeiro passa e, como se toda tragédia não fosse ainda suficiente, outra se soma nesse período assustador. Pacientes internados em hospitais de Manaus pela covid-19 morrem um a um de asfixia. O motivo? O Governo do líder que diz “e daí?”, embora previamente, não se adiantou em providenciar cilindros de oxigênio para a região.
Cientistas, intelectuais e jornalistas se debruçam na tentativa de entender o que se passa. Do líder carismático proposto por Max Weber às novas conceituações de liderança definidas por Alexander Haslam, Michael Platow e Stephen Reicher, nada parece dar conta do tipo de líder que é Bolsonaro. O carisma ajudaria a desfazer instituições políticas dominantes e abrir frentes para novas vidas inéditas na história. Bolsonaro seria esse carismático weberiano? Não parece. Ele é um líder político voltado aos seus interesses pessoais e familiares e que tenta se manter no poder concentrando poderes em torno de velhas instituições tradicionais.
Mas mesmo que fosse carismático nesses termos, a história já nos ensinou que líderes carismáticos também podem levar ao atraso e à destruição. Daí os estudos atuais não olharem para o líder de forma isolada, nem compreenderem seus seguidores como uma simples massa de manobra, mas sim estudarem a relação entre líderes e seguidores dentro de um contexto e de um grupo social. No caso de um país, estamos falando do presidente da república, de todos os brasileiros e do contexto em que vivemos. Em grande parte, o contexto da pandemia domina nossas vidas e deveria estar no centro da relação entre residente e povo.
Assim, um chefe do executivo fere completamente seu papel institucional quando estabelece vínculos com uma parcela da sociedade criando, dentro de um contexto social grave, uma fragmentação do grupo social principal (a nação) em grupos de aliados e inimigos a serem combatidos. No meio de uma pandemia, um líder deveria motivar as pessoas em ações conjuntas voltadas a um objetivo comum que é o enfrentamento ao covid-19. Por isso, as falas de Bolsonaro são graves na medida em que aqueles que o consideram seu líder estão motivados a colocar em prática um objetivo comum específico desse grupo social: não seguir as recomendações para o combate à pandemia.
Ao contrário do que Bolsonaro faz, uma liderança nacional em um país do tamanho do Brasil deveria fomentar e apoiar as diferentes lideranças estaduais, municipais e comunitárias. A história recente mostra a importância disso; veja o caso do ebola na África Ocidental. A mobilização de vozes locais para ajudar a construir o engajamento e a confiança nas autoridades de saúde aumentou o sucesso das medidas de saúde pública. Isso pode ser feito, por exemplo, pelos agentes comunitários e campanhas como ir de porta em porta. Mas para isso precisamos de um líder nacional, e não um líder de sua tribo restrita.
Se exemplos do passado já mostravam o papel da liderança, estamos assistindo e vivendo as consequências de lideranças com estilos diferentes. Liderança não é apenas sobre o líder, mas também sobre a criação de um senso de identidade social compartilhada entre seus seguidores. Algo que a primeira-ministra da Nova Zelândia, Jacinda Ardem, fez com muita sabedoria. Vários estudos mostram que as pessoas tendem a preferir líderes que cultivam um senso de que “estamos todos juntos nesse barco”. Esse tipo de liderança dá às pessoas um senso de autoeficácia coletiva e esperança tendo como consequência natural e sem necessidade de imposições a adoção de comportamentos positivos de combate à pandemia. Os números mostram isso: Nova Zelândia de um lado, Brasil do outro.
Bolsonaro está longe de ter atributos básicos que todo presidente de uma nação deveria ter. Líderes e autoridades que tratam as pessoas com respeito e que comunicam que confiam nas pessoas para fazerem o que lhes é ordenado tendem a ter mais sucesso em obter cooperação. Bolsonaro vai na contramão disso ao atacar, xingar e ofender a todos que ele não considera membros de seu grupo. Mas ele vai além. Não critica apenas grupos de brasileiros; ele critica nações inteiras e nos coloca de fora de alianças fundamentais para combater essa crise. Ou como orgulhosamente disse seu Chanceler, transforma-nos em pária mundial.
Lideranças assim conseguem até fazer com que o uso de máscara passe a ser uma escolha política e não de saúde. Lideranças devem fomentar ações coletivas: liberdade só é garantida pelo exercício da coletividade. Bolsonaro faz o oposto, estimula o sectarismo do qual faz parte, alimenta ódio entre seus liderados, mantém velhas estruturas tradicionais de poder, de compadrio e de privilégios. Bolsonaro é o nosso velho Brasil patrimonial. Que isso fique como mensagem para o legislativo do congresso preocupado com a sucessão e com o vice Hamilton Mourão, hoje mais político e experimentado na vida republicana.
Carolina Botelho é doutora em Ciência Política, pesquisadora no Laboratório de Neurociência Cognitiva e Social Mackenzie (SCNLab/Mackenzie) e Doxa/Iesp/UERJ.
Paulo Boggio é coordenador do Laboratório de Neurociência Cognitiva e Social do Mackenzie.
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