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Pedra de toque
Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

Trinta anos

Há três décadas começou a ser publicada no EL PAÍS esta coluna que, a partir da liberdade total, se fundamenta na ideia sartreana de que o autor deve se comprometer e lutar a batalha ideológica e política

FERNANDO VICENTE
FERNANDO VICENTE
Mario Vargas Llosa
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Há trinta anos, mais ou menos neste período, comecei a publicar minha coluna Pedra de Toque no EL PAÍS. Joaquín Estefanía, que era o diretor do jornal nessa época, lembra que, para testar seu espírito tolerante, minha primeira colaboração foi um elogio a Margaret Thatcher, e lembra também o café da manhã no Hotel Palace com que ele, minha agente literária e amiga queridíssima, Carmen Balcells, e eu fechamos o acordo. A Joaquín e aos outros quatro diretores que tive nessas três décadas em que, acho, nunca faltei com meu compromisso devo agradecer-lhes por nunca terem me cortado um artigo, um título, e nunca me sugerirem um tema. O nome da coluna, Pedra de Toque, inventei antes, quando escrevia no jornal Expreso e na revista Caretas, de Lima, porque era fascinado por essa pedra medieval que, até agora, não sei se era real ou fantástica e que julgava a qualidade dos metais.

Escrever no EL PAÍS era uma aspiração secreta que tinha desde o surgimento do jornal em 1976, dirigido por Juan Luis Cebrián ―muito jovem à época―, que foi para mim a verdadeira transição na Espanha. Como eram velhos e antiquados os jornais nos tempos da ditadura! Havia excelentes jornalistas, sem dúvida, mas a imprensa era, por seu formato, suas manchetes e em geral sua composição e a severíssima censura, dos tempos de Matusalém. O lançamento do EL PAÍS constituiu uma revolução por sua diagramação e forma e, sobretudo, porque nele escreviam todas as pessoas de esquerda (e algumas da extrema-esquerda) junto com muitos centristas e liberais, com total liberdade e discutindo tudo o que acontecia no país e na Europa, com ideias modernas e geralmente em prosa boa e funcional. O jornal se transformou em um símbolo dentro das grandes transformações vivenciadas pela Espanha; o EL PAÍS encarnou todas elas no domínio da imprensa atingindo um prestígio internacional que, me parece, não teve antes, e não teria depois, nenhum jornal espanhol.

Graças a esse jornal e ao acordo que assinamos minhas colunas começaram a ser publicadas em todos os países da América Latina, incluindo o Brasil, e também em alguns países europeus e os Estados Unidos, como o La Repubblica, de Roma, o Frankfurter Allgemeine Zeitung, de Frankfurt e o The New York Times, de Nova York. Este pluralismo fez com que, desde então, meus artigos evitassem os temas localistas e tivessem sempre ―bom, sempre é uma palavra muito ampla― orientação internacional. O que gostava é que podia escrever de tudo e sobre tudo: artigos políticos, evidentemente, mas também notas de viagem, resenhas de livros, memórias da juventude e da infância, o universo inteiro. Eu os escrevi durante muitos anos aos domingos e depois ―não sei por que mudei― às quartas.

Levo geralmente uma manhã e uma tarde e, há anos, antes de publicá-los, faço com que três amigos os leiam. Eu morava à época em Londres e, mesmo que levasse um dia para escrevê-los, pensar neles era inevitável durante minhas corridas e depois caminhadas no Hyde Park, no Luxemburgo, em Paris, no Malecón de Barranco, em Lima, e no Central Park de Nova York. Sempre os escrevi levando em consideração uma opinião de Jean-François Revel, segundo quem os bons artigos são aqueles que desenvolvem uma só ideia, e a frase com que, dizem, Raimundo Lida iniciava suas aulas em Harvard: “Lembrem que os adjetivos foram feitos para não usá-los”. Era argentino e sabia da maldita propensão à retórica que temos os latino-americanos. Mas também corria e caminhava pelas manhãs procurando títulos. Ninguém imagina a facilidade com que escrevo esta coluna quando já tenho de antemão um título que resume suas ideias, e vice-versa, as dificuldades que enfrento para escrevê-la quando não acho de antemão esse título, seu coração secreto. E nada me alivia e exalta tanto, quando estou sepultado em um romance, como escrever um artigo.

A influência que tiveram os existencialistas franceses em minha adolescência, e em especial Sartre, foi enorme. Tanto que meus amigos Luis Loayza e Abelardo Oquendo me apelidaram “O sartrezinho corajoso”. Muitas das coisas em que acreditava graças a eles agora foram apagadas e até as detesto, mas não a ideia sartreana de que o escritor deve se comprometer ―s’engager―, e não se perder na fantasia, procurando lutar a batalha ideológica e política aqui e agora. Não me importa e acho justíssimo que existam escritores que não deem a mínima aos problemas sociais, mas não é o meu caso, eu sempre acreditei no “compromisso” do escritor e este esteve representado em minha vida pelo jornalismo, que comecei a praticar quando tinha 16 anos no La Crónica de Lima e continuei exercendo em jornais, rádios e televisão, e provavelmente morrerei praticando-o.

O jornalismo significa a liberdade, criticar o que nos parece ruim e elogiar o bom, ainda que as noções de bom e mau mudem radicalmente de uma para outra pessoa. Enquanto existe essa diversidade na imprensa um país é livre e, quando as coisas começam a ser ocultas, deixa de sê-lo. É verdade que as fake news alteraram esse panorama, mas o jornalismo livre irá combatendo-as cada vez melhor até confiná-las no canto das coisas excepcionais e ridículas. Leio três jornais por dia e consulto detalhes no computador. Mas, em geral, não gosto das telas, com exceção dos jogos de futebol e os filmes; para as notícias e opiniões, e principalmente a literatura, prefiro o papel.

Com o que vi e li nos anos que tenho nas costas ―próximo março serão 85― cheguei a me convencer de que o maior desafio à democracia, o comunismo, está morto e enterrado, e sobrevive somente em países falidos, como a Coreia do Norte, Cuba e Venezuela. Agora, os maiores inimigos da liberdade são o populismo e a corrupção infinita. E, pela primeira vez na história, os países podem escolher ser pobres ou prósperos, não importa de que tamanho sejam e se têm recursos ou não. Mas escolher ser prósperos não é nada fácil. Há uma transição dificílima e traumática a um capitalismo limpo, como o de certos países asiáticos; no Chile, em que depositei tantas esperanças, tudo parece ter ido para o inferno. O capitalismo putrefato da Rússia e da China também não é a fórmula, de empresários que ficam ricos engolindo calados o que o poder ordena. Mas a Coreia do Sul, Taiwan e Singapura mostram que a prosperidade aproxima a democracia ao invés de afastá-la. Minha grande decepção desses anos foi Israel, que eu tinha como exemplo ao mundo subdesenvolvido. Os israelenses, é verdade que com ajudas internacionais, transformaram em um país moderno e livre o que era, antes, um ermo. Mas agora é um país dominante e abusivo, que asfixia a cada dia mais os palestinos, e com um governante, Netanyahu, um verdadeiro delinquente que se aferra ao poder somente para não ir à cadeia. Sempre disse que o único país do mundo no qual ainda me sentia de esquerda era Israel; agora, nem lá.

Trinta anos são muitos anos, mas não pretendo me aposentar. Se me aposentarem à força, não haverá outro remédio a não ser me resignar. Minha esperança é sempre encontrar algum jornalzinho misericordioso que aceite minhas Pedras de Toque, em que defenda aquelas coisas sobre as que certamente irei mudando em função da história que se vá fazendo, até o fim.

Direitos mundiais de imprensa em toda as línguas reservados a Ediciones EL PAÍS, SL, 2020. © Mario Vargas Llosa, 2020.

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