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ELEIÇÕES PRESIDENCIAIS BOLÍVIA 2020
Opinião
Texto em que o autor defende ideias e chega a conclusões basadas na sua interpretação dos fatos e dados ao seu dispor

O partido de Evo Morales não precisa dele como candidato para vencer na Bolívia

O paradoxo é que a perseguição política e judicial dotou o MAS de uma épica que havia perdido

Evo Morales, ex-presidente da Bolívia, após coletiva de imprensa em Buenos Aires nesta segunda-feira, 19 de outubro.
Evo Morales, ex-presidente da Bolívia, após coletiva de imprensa em Buenos Aires nesta segunda-feira, 19 de outubro.JUAN MABROMATA (AFP)

Em 21 de julho de 1946, uma mobilização urbana em La Paz contra o Governo de Gualberto Villarroel foi escalando em radicalismo e terminou com uma multidão entrando no Palácio Quemado e assassinando o presidente, que acabou pendurado em um poste de iluminação. O escritor Mario Chabes descreveu a gesta “libertadora” em um livreto intitulado A Revolução Francesa da Bolívia. Não foi, sem dúvida, o único levante popular em um país caracterizado por suas revoluções, mas sintetiza bem as características das rebeliões antipopulistas: embora o discurso mobilizador seja em favor da democracia, esses movimentos costumam acabar restaurando, ou tentando restaurar, velhas ordens e hierarquias sociais. Villarroel não era um político democrata, mas favoreceu a democratização social com medidas em favor dos indígenas e dos mineiros. Seus sucessores eram vistos pelos “de baixo” como parte dos privilegiados de sempre. E, seis anos depois, estouraria a revolução mais profunda do século XX boliviano. O “poste de Villarroel” permaneceu, aí, como símbolo de ignomínia e fonte de temor dos governantes.

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O Governo de Evo Morales também se moveu na tensão entre liberalismo político e democratização social, embora fosse mais democrático que o de Villarroel. A revolta de novembro de 2019 também se deu em nome da democracia e também houve livros e folhetos que celebravam, neste caso, a “Revolução das Pititas (fitinhas)”. Evo temeu o poste de iluminação e fugiu primeiro para a região cocalera do Chapare e depois para o México e a Argentina. Mas o que veio, de novo, não foi um regime democrático constitucional mais pleno, mas uma onda de revanchismo contra o Movimento ao Socialismo (MAS), em grande parte liderada pelo ministro do Governo, Arturo Murillo.

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O problema é que os ataques ao MAS se confundiam com o desprezo por um bloco étnico-social mais amplo, que na última década e meia expandiu significativamente seu acesso ao poder, tanto material como simbólico. Esses setores continuaram encontrando no MAS uma via de representação. Este partido sui generis, fundado na década de 1990, é uma espécie de confederação de sindicatos, urbanos e rurais, comunidades indígenas e diversos tipos de organizações populares, com pouca organicidade, mas grande capacidade de representação corporativa dos mais diversos interesses sociais “dos de baixo”.

O MAS é um equilíbrio permanente e instável: por exemplo, no Norte de Potosí, deve articular comunidades ayllus originárias, sindicatos de mineiros e organizações camponesas; todos têm que ter seus representantes nas listas de candidatos, seja a deputado, senador, prefeito, etc. E, como mostramos com Hervé Do Alto, a perspectiva de acesso ao Estado é a “cola” que mantém o MAS unido.

Quando o Governo caiu, em novembro do ano passado, o novo bloco de poder, com grande presença de representantes de Santa Cruz, acreditou que sem acesso a recursos do Estado, e com Morales no exílio, o MAS afundaria (o mesmo que pensou o antiperonismo argentino em 1955, após a queda de Juan Perón e seu exílio espanhol).

Mas o MAS sobreviveu porque continua sendo percebido como uma forma de acessar o Estado ― visto tanto como oportunidade de empregos como de poder ― pelos setores “plebeus”. E não só isso. O MAS conseguiu se renovar parcialmente, se reconectar com as bases depois de tantos anos de poder estatal e burocratização das organizações sociais, e até de estabelecer autonomia em relação ao líder exilado quando suas leituras da realidade, desde fora, não coincidiam com aquelas dos que estavam se expondo dentro da Bolívia.

Isso mostra, sem dúvida, que o MAS poderia vencer sem Evo, o que não parecia evidente até agora. Na verdade, o ex-presidente sempre buscou se oferecer como garantia de vitória. Até que as tentativas de reeleição foram contraproducentes e tudo desabou. Mas o paradoxo é que a perseguição política e judicial dotou o MAS de uma épica que havia perdido. E isso se soma aos péssimos resultados do Governo de Jeanine Áñez, aos tons elitistas da candidatura de Carlos Mesa e ao regionalismo radical e conservador de Luis Fernando Camacho, líder emergente de Santa Cruz.

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