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Opinião
Texto em que o autor defende ideias e chega a conclusões basadas na sua interpretação dos fatos e dados ao seu dispor

Um homem descendo as escadas

Moro protagoniza a história de um ministro que chegou pequeno e saiu menor. Precisará de um esforço monumental para desfazer seus vínculos com Bolsonaro, para quem correu de braços abertos, e para explicar os seus ‘silêncios’

O ex-ministro Sergio Moro, em 24 de abril.
O ex-ministro Sergio Moro, em 24 de abril.UESLEI MARCELINO (EL PAÍS)

“Não confundam alhos com bugalhos”. Este é o ditado popular apropriado para analisar o papel do Sr. Sérgio Fernando Moro na magistratura, na política e na atual conjuntura como ex-integrante do Governo Brasileiro, de cujo titular, vale o registro, foi fiel e determinado servidor ainda no período pré-eleitoral. Uma coisa é o combate à corrupção. Uma luta necessária, justa e incansável. Outra é a condução de investigações de modo a atingir determinados e específicos objetivos de cunho pessoal, político e inclusive partidário. Com o agravante da utilização da meritória bandeira da luta contra desmandos e desvios éticos de todos os gêneros e espécies...

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Para não confundir uma coisa com a outra, a premissa é simples: ter a dimensão real das importantes funções públicas abraçadas, e o desprendimento necessário para fugir dos próprios “demônios”. Ideais são sempre relevantes, mas o desafio é colocá-los em prática. Como juiz, no Paraná, Moro violou a imparcialidade que jurou respeitar, e agiu de forma criminosa, em conluio com outras autoridades, empreendendo uma perseguição implacável e sem “justa causa” contra a principal liderança política do campo progressista do nosso país.

Os bastidores da Operação Lava Jato, desnudados pelo The Intercept Brasil e por outros importantes órgãos de imprensa, entre os quais o El País, através da publicação de mensagens e de gravações trocadas no ambiente de uma das principais investigações do país, revelaram um perverso pacto de promiscuidade de parte do Poder Judiciário com parte do Ministério Público e com outros relevantes aparatos de investigação.

O conteúdo dos diálogos mostra que as “três instâncias” —investigar, acusar e julgar—foram engolfadas numa lógica paralela e simétrica, perdendo a indispensável função de serem “revisoras” uma da outra. Tudo dentro de um único e inconfessável objetivo. Quem, como nós, já enxergava e denunciava as arbitrariedades, não se surpreendeu.

Fundamental que o Supremo reconheça, no julgamento que se avizinha, a inequívoca e ousada parcialidade com que o então juiz Sérgio Moro conduziu os julgamentos sob sua responsabilidade. No caso concreto, sob pena de uma desmoralização ainda mais acentuada do nosso sistema de Justiça, a anulação do processo em que foi condenado o ex-presidente Lula é a melhor resposta e a única saída.

Em geral, a isenção é abandonada para atender à vaidade pessoal —um dínamo humano e com elementos de irracionalidade— ou como forma de conciliação com o mundo exterior e com os seus tentáculos. É quando o agente público sucumbe pela sedução dos interesses econômicos e injunções político-partidárias. Acrescenta-se a tais fatores o ambiente midiático: o canto da sereia dos microfones e —nestes tempos de redes sociais— a interação com hordas de fãs ávidas pelo espetáculo do linchamento.

Aqui, nasce também um monstro institucional: a Justiça militante, o ativismo judicial, a politização do judiciário e o uso da lei para perseguir quem foi declarado como inimigo (lawfare). Ao violar a imparcialidade, o juiz Sérgio Fernando Moro entrou no conflito entre dois projetos políticos completamente distintos e antagônicos, personificados pelas figuras do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e do então candidato Jair Messias Bolsonaro, este último aliado ao que de mais atrasado poderia existir na política nacional.

As sentenças de Moro afetaram diretamente a candidatura do ex-presidente Lula. Fabricadas ao “arrepio da lei”, ignorando fartas e contundentes provas de inocência, retiraram do último pleito presidencial o seu franco e inegável favorito. Poucos meses depois —para espanto e perplexidade das comunidades jurídicas nacional e internacional— Moro foi servir ao presidente que ele ajudou, decisivamente, a eleger.

Não sem antes, entretanto, barganhar uma “pensão” sem amparo legal, cujos misteriosos contornos ainda deve esclarecer. A prestigiada cadeira de Ministro do Supremo Tribunal Federal também lhe foi oferecida na ocasião. Uma grande vergonha, para dizer o menos. Já ali se podia supor o que estaria por vir...

Não pode passar como mero deslize, vale o registro, a liberação de gravações íntimas entre familiares do ex-presidente Lula, nem tampouco o diálogo com a então presidente da República, Dilma Rousseff, em momento crucial do processo de impeachment. Diálogos manipulados, inclusive, com o objetivo de induzir em erro Ministros da mais alta Corte do país, e, também, com a confessada intenção de incendiar a opinião pública... Tudo isso ficou impune, lamentavelmente, enfraquecendo as instituições e a própria democracia brasileira.

O projeto político vitorioso nas últimas eleições contou, portanto, com o protagonismo determinante e determinado de importantes agentes públicos do país. A tal República de Curitiba... A união de delegados, procuradores, juízes e de desembargadores, com estratégias políticas e com objetivos eleitorais bem definidos, entretanto, não foi capaz de justificar o injustificável. A condenação de um inocente, em um julgamento que começou pelo fim, haverá de produzir a releitura necessária de funções e instituições, para quem sabe, assim, permitir que a história não se repita no futuro.

Moro, portanto, não é antítese em relação ao Governo que até então integrou, ocupando o honroso cargo de Ministro da Justiça. No bate-boca com o atual mandatário do país, fica a pergunta, qual estatura do homem Sérgio Fernando Moro? Uma possível resposta pode ser dada pelo filme Neruda. A narrativa do filme franco-argentino-chileno-hispano-estadunidense, de 2016, do gênero drama biográfico, dirigido por Pablo Larraín e escrito por Guilherme Calderón, mostra um obscuro agente público, cercado de possíveis boas intenções, mas com uma obsessão assustadora diante da grandeza de Pablo Neruda.

O filme foi selecionado como representante do Chile ao Oscar de melhor filme estrangeiro em 2017. Vale conferir. A luz que iluminava Neruda foi a fresta que o pequeno burocrata vislumbrou para entrar na história. Na perseguição irracional, atropelando a realidade, a lei e os fatos, só importava um único objetivo: derrotar Neruda e assim fazer o serviço que o colocaria no rol dos “chilenos ilustres”. A semelhança de Moro com o personagem inquisidor é evidente. Moro, em Lula, buscou o antagonismo que o tiraria da insignificância a qual já estava perpetuamente condenado.

O ex-ministro certamente terá um retrato nas paredes do Palácio da Justiça, em Brasília. Mas passa a constar em sua nova agenda, agora, os embates com Bolsonaro, o linchamento das tropas digitais, a apuração das denúncias que fez pela imprensa e a investigação do Ministério Público a respeito de suas próprias ações, e em especial de suas omissões. É possível que vá amargar o veneno que muitas vezes em adversários ministrou. Terá também um esforço monumental para desfazer seus vínculos com Bolsonaro, para o qual correu de braços abertos como voluntário de primeira hora, e ainda mais, para explicar os seus silêncios.

A alusão que fez ao republicanismo na era Lula e Dilma foi justa. É bem-vindo o reconhecimento de que democracia de verdade preserva o papel das instituições de controle e de fiscalização. Mas em tempo algum apaga seu rastro de criminosa e vergonhosa cumplicidade em direção ao que Bolsonaro significa. Entre dois grandes conflitos, escolheu o populismo autoritário – e por uma futura vaga no Supremo Tribunal Federal, ou pela tal “pensão” mal explicada, diriam os mais maliciosos.

Esta é a biografia do moço que nasceu em Maringá. Moro, para nossa surpresa e indignação, parece não conhecer o Princípio da Impessoalidade, ou, tanto pior, parece querer que tal princípio seja aplicado de forma seletiva...Custa crer que tenha passado em um concurso tão rígido quanto o da magistratura.

Uma lei sob encomenda, e em benefício próprio, mesmo que no campo da barganha e da hipótese, já deveria ser suficiente para levá-lo ao banco dos réus. As gravíssimas e variadas denúncias precisam ser apuradas. Mas que se dê a ele o que ele negou a todas as pessoas que julgou. A tal da presunção de inocência.

O fato, e esta é a grande ironia, é que ele precisará de competentes advogados, profissão que ele, como magistrado e ministro, sempre desprestigiou. Hoje, no depoimento que prestará à Polícia Federal, precisará de muito malabarismo para confirmar as graves acusações que fez sem se autoincriminar. É bom que se acostume . De “testemunha”, deverá, em breve, passar para investigado. Sentará no banco dos réus, para onde já deveria ter sido mandado há muito tempo...

O grande mal desta atual conjuntura de pandemia é a perda de milhares de brasileiros e brasileiras, de todas as idades e cidades do país. Resta torcer e lutar para que o Estado possa agir com eficácia na proteção da saúde. A aglutinação entre a crise política, econômica e sobretudo na saúde, desperta a busca por caminhos institucionais capazes de remover todo o mal que se abate hoje sobre o Brasil. Este Governo continua investindo na estratégia de criar uma crise para resolver outra.

Não prosperará, entretanto, frente a necessária e urgente união de todos os defensores da Democracia e do Estado de Direito. Marcharemos, juntos, para que, nos marcos da lei, sejam tomadas todas as providências necessárias contra o ódio, a intolerância, a hipocrisia e o autoritarismo deste nefasto Governo e de quem a ele serviu. É tempo de cuidar da vida e de cultivar a esperança. O país precisa de mudanças. “A verdade marcha e nada conseguirá detê-la’, escreveu Emile Zola. Assim será.

(*) Marco Aurélio de Carvalho é sócio fundador da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia e do Grupo Prerrogativas.

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