É difícil derrotar um presidente que se sente obra de um milagre e eleito por Deus
Bolsonaro e Lula sentem ser o novo Moisés capaz de retirar o Brasil de sua latente escravidão, ainda que por caminhos e visões opostas de tal escravidão
O ex-presidente Lula saiu da prisão com o firme propósito de derrotar o presidente Bolsonaro. Não será tão fácil enquanto ele e seus fiéis seguidores de extrema direita continuarem convencidos de que foi Deus quem o escolheu após o milagre de sair ileso de uma facada recebida na barriga por um desequilibrado durante a campanha eleitoral, e que quase o matou. Ele mesmo contou que os médicos lhe disseram que de 200 casos como o seu somente um sobrevive. Ao deixar o hospital, Bolsonaro, aquele que foi salvo por um milagre, levava no pulso uma fita azul com a citação do Apocalipse, 12,11, “protegido pelo sangue”.
O Brasil é presidido por um capitão reformado que se confessa objeto de um milagre de Deus que salvou sua vida e o elegeu nas urnas. Deus é a palavra mais usada do escasso vocabulário de Bolsonaro, junto com as armas, a família e a pátria. Em seu discurso de posse, em 1º de janeiro, em poucos minutos falou Deus 12 vezes. No passado, na mesma ocasião, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso não o nomeou uma vez sequer, Dilma uma e o católico Lula, duas. Bolsonaro se considera um resgatado pela mão de Deus. “Sou um sobrevivente e devo minha vida a Deus”. A vida e a eleição a presidente.
A fé religiosa pode ser libertadora e opressiva, nunca inócua. Por isso deveria ficar à margem da política. Pode ser escudo e arma. É as duas coisas no Brasil multireligioso em que praticamente não existem ateus e poucos agnósticos. Deus está no sangue dos brasileiros que o usam, dos mais pobres aos mais ricos.
“Eu me pergunto", disse Bolsonaro (após ser eleito com 157 milhões de votos), "o que fiz para merecer isso”. E acrescentou: “Eu não nasci para ser presidente, nasci para ser militar”. E enquanto se pergunta como pôde chegar à presidência para indicar que foi Deus que o conduziu pela mão, Lula, pelo contrário, se queixa de que o impediram de ser presidente pela terceira vez já que ele, diz, “sabe como governar esse país”. Um duelo entre Bolsonaro, fruto de um milagre, e Lula que sabe para que nasceu. Duelo perigoso.
Ambos, Bolsonaro e Lula, sentem-se ser o novo Moisés capaz de retirar o Brasil de sua latente escravidão, ainda que por caminhos e visões opostas de tal escravidão. Bolsonaro se sente tomado pela mão de Deus, e Lula talvez pense ser a mão desse Deus. Ao juiz Moro durante um interrogatório em um de seus processos por corrupção, Lula disse que a Bíblia proíbe “invocar o nome de Deus em vão”. Bolsonaro se sente o favorito de Deus e Lula parece querer emular esse mesmo Deus. Competição difícil no ringue para elucidar quem o céu escolheu para dar-lhe a vitória final.
Luta inútil por emular o Altíssimo em um mundo globalizado que há tempos escolheu o deus da secularidade após ter se libertado dos deuses religiosos relegando-os à esfera íntima e pessoal. O Brasil ainda está a meio caminho dessa conquista civilizatória enquanto os defensores da teocracia lutam, com Bolsonaro, para mudar a Constituição sacralizando-a e colocando-a aos pés de Deus. O lema de Bolsonaro que o acompanhou durante toda a campanha eleitoral, foi “Deus acima de tudo”. O nome desse Deus ainda é uma incógnita nessa batalha entre duas concepções diferentes de Brasil e da História.
E se tudo fosse uma ilusão, se o Brasil real não fosse o de Bolsonaro e o de Lula, o dos milagres e o dos caudilhos? Talvez a verdadeira esperança de que esse país possa saber expressar um dia a grande riqueza cultural, ecumênica e de convivência pacífica gestada em seu ventre, não passe por milagres e bravatas fora do tempo, e sim pelos caminhos dolorosos e salvadores da liberdade sem cores e sobrenomes.
Os verdadeiros heróis, os criadores da paz e liberdade na diversidade, deverão ser do mais humilde ao mais poderoso do Brasil. Deles, de sua fadiga, de sua capacidade de resistência à barbárie e não de milagreiros, poderá nascer um novo Brasil que leve o sabor do pão sovado pelas mãos juntas de todos os seus filhos.
Tu suscripción se está usando en otro dispositivo
¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?
Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.
FlechaTu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.
Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.
En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.
Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.