À espera de um milagre, o peronismo submete sua gestão a plebiscito

Governo de Alberto Fernández perderá o controle do Congresso argentino se não reverter neste domingo a surra sofrida nas primárias de setembro

Seguidores do presidente Alberto Fernández põe os dedos em “v”, gesto que representa o peronismo, em Buenos Aires, em 11 de novembro.MATIAS BAGLIETTO (Reuters)

A Argentina renova parte do seu Congresso este domingo. O peronismo enfrenta o enorme desafio de reverter os resultados das eleições primárias de setembro, quando seus candidatos perderam para a oposição em 18 das 24 unidades federais. Aqueles resultados não tinham repercussão prática, ao contrário dos que serão divulgados nesta noite. Se os percentuais se repetirem, e tudo indica que assim será, o Governo de Alberto Fernández deixará de ser a primeira força na Câmara de Deputados, e no Senado perderá o quórum próprio – ou seja, a capacidade de tramitar projetos sem necessidade de apoio de outros partidos. Será um cenário inédito na história política argentina: nunca o peronismo governou sem controlar o Parlamento.

As eleições que marcam a metade do mandato presidencial são habitualmente uma história de más notícias para o peronismo em sua versão kirchnerista. Apenas uma vez, em 2005, o movimento conseguiu superar essa espécie de plebiscito da sua gestão. Agora, entretanto, aparece uma derrota que não será como as anteriores. O cenário não pode ser pior. A Argentina ainda não acabou de se recuperar da recessão que o presidente Fernández herdou de Mauricio Macri. A inflação permanece em 50% ao ano, a pobreza está acima de 40%, e o peso não para de cair frente ao dólar. Os 9% de crescimento do PIB esperados para este ano não bastarão para recuperar o que se perdeu durante a pandemia. O país sul-americano, além disso, está sem crédito, à espera de uma renegociação com o FMI. A política agrega dramatismo ao quadro.

“Estas eleições parecem irrelevantes, mas não são; e não só porque o Governo pode perder o controle do Congresso”, observa Mauricio Villa, diretor para a Argentina da consultoria Llorente & Cuenca. “Para os dois anos de gestão que restam [até as eleições presidenciais de 2023], você tem um Governo de coalizão que nunca chegou a se acomodar à gestão, em parte por causa da pandemia, e em parte por uma inconsistência orgânica. É um Governo de viés peronista que não está pensado para administrar depois de uma derrota”, explica.

Um exemplo: dias depois da queda nas primárias, a vice-presidenta Cristina Fernández de Kirchner ordenou a seus ministros mais próximos que apresentassem sua renúncia. Quis forçar assim uma mudança de Gabinete, à qual o presidente se negava. Acompanhou a jogada com uma carta aberta em que pressionava Fernández a se desfazer do seu chefe de gabinete e homem de máxima confiança, Santiago Cafiero. Depois de uma ameaça de resistência, Fernández cedeu em tudo. Perdeu poder, e sua figura se apagou ainda mais. Já vinha golpeada por uma série de erros não forçados, como um aniversário da primeira-dama comemorado em plena quarentena obrigatória e a descoberta de um “posto de vacinação VIP” para os amigos do poder, dentro do Ministério de Saúde. As fotos do aniversário na residência oficial e as vacinas VIP iniciaram o declínio governista.

O mau humor social decorrente da quarentena e a deterioração econômica completaram um coquetel que finalmente deu asas à oposição macrista. Os candidatos estruturaram sua campanha ao redor de um discurso contrário à quarentena, um filão fácil de explorar após meses de fechamento, comércios falidos e escolas vazias. O assassinato de um comerciante às vésperas da eleição acendeu a chama da reivindicação de segurança, sempre à flor de pele na Argentina. O Governo tentou deter a inundação opositora com medidas econômicas pró-consumo, como um aumento do salário mínimo, mais planos de assistência social e uma redução do imposto para a renda das classes médias. Mas as pesquisas antecipam um impacto eleitoral limitado destas medidas. O peronismo depende de um milagre.

Os argentinos renovarão 127 deputados (de um total de 257) e 24 senadores (de 72). Todas as 23 províncias e a Cidade Autônoma de Buenos Aires elegerão deputados nacionais, mas apenas oito votarão para senador. O triunfo da aliança opositora Juntos pela Mudança parece evidente, embora Macri já não seja a figura que mais brilha. O ex-presidente arrasta uma imagem negativa similar à de Cristina Fernández de Kirchner. Por isso, neste domingo se jogará a cartada do chefe de Governo da cidade de Buenos Aires, Horacio Rodríguez Larreta, um presidenciável que apadrinhou como seus aos candidatos da coalizão ao Congresso.

O número mágico da jornada opositora é o cinco – a quantidade de senadores a somar para “deter Cristina Kirchner” na Câmara Alta, como repetem os candidatos. A vice-presidenta controla esse recinto por mandato constitucional, mas principalmente por estratégia política. É ali que se discutem leis que são do seu interesse, como uma profunda reforma judicial que a pandemia e a crise econômica mantiveram engavetadas por enquanto. Dificilmente ela poderá recuperá-la a partir de segunda-feira. Se o Juntos pela Mudança alcançar também a cifra de 120 deputados, ficará em condições de assumir a presidência da Câmara Baixa, hoje nas mãos do peronista Sergio Massa, terceiro na linha sucessória em caso de vacância na Casa Rosada. Espreitam enquanto isso os experimentos de ultradireita, como o candidato Javier Milei na cidade de Buenos Aires, produto de um desânimo geral que mantém as pessoas mergulhadas na apatia, no cansaço e na incerteza. O país sul-americano está, seja como for, às portas de uma etapa de maior instabilidade política e econômica. Amanhã se saberá a dimensão do descalabro.

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