Ortega e Murillo liquidam o processo eleitoral ao inabilitar o último partido de oposição na Nicarágua
Regime extingue a personalidade jurídica do partido Aliança Cidadãos pela Liberdade, a última esperança da oposição para enfrentar o sandinismo nas urnas
Daniel Ortega e Rosario Murillo liquidaram o processo eleitoral nesta sexta-feira com a extinção da personalidade jurídica do partido Aliança Cidadãos pela Liberdade, (ACxL), a última esperança da oposição para enfrentar o regime sandinista nas urnas. Desta forma, ficou consagrado o que os analistas políticos vinham alertando: uma “eleição sob medida” para o casal presidencial, sem condições de transparência nem de competitividade, que aprofundará ainda mais a crise sociopolítica e de direitos humanos do país centro-americano.
Embora o ACxL tenha decidido concorrer em um processo considerado “viciado” pela comunidade internacional, independentemente das críticas de um setor da oposição afastado da disputa por seus candidatos terem sido presos pelo regime, o agrupamento político representava a última possibilidade de competição. O partido que insistiu em participar das eleições foi acusado, entre outras coisas, de legitimar eleições questionadas de antemão. No entanto, os Ortega-Murillo decidiram cruzar mais uma linha vermelha contra a oposição e extinguiram a personalidade jurídica do ACxL.
O Conselho Eleitoral Supremo (CSE), controlado pelo sandinismo, decidiu inabilitar o ACxL poucas horas depois que o Partido Liberal Constitucionalista (PLC) apresentou uma queixa “por violações à Lei Eleitoral”. Um dos argumentos oficiais para a tomada dessa medida é que a presidenta do ACxL, Kitty Monterrey, possui dupla nacionalidade –norte-americana e nicaraguense–, o que, segundo advogados eleitorais consultados pelo EL PAÍS, não é motivo para suspender direitos e muito menos para impedir representar um agrupamento político.
O PLC é o partido político de Arnaldo Alemán, ex-presidente acusado de corrupção e antigo aliado de Ortega. No entanto, o PLC é controlado agora por María Haydeé Osuna, política liberal e irmã do ex-magistrado eleitoral Julio César Osuna, que usurpava identidades para vendê-las ao narcotráfico. Osuna foi condenado e colocado em liberdade pelo regime de Ortega-Murillo em 2016. Por essa razão, na Nicarágua se diz que a política “paga favores” ao sandinismo com a denúncia contra o ACxL.
Ao inabilitar o ACxL, a eleição da Nicarágua deixa Ortega e Murillo como candidatos únicos, sem adversários que lhes possam fazer contrapeso. Os seis partidos inscritos na eleição são colaboradores do regime e seus candidatos são totalmente desconhecidos.
Depois da oficialização da inabilitação do ACxL e da anulação da cédula de identidade de Kitty Monterrey, a sede do partido em Manágua ficou deserta. Fontes do partido afirmaram ao EL PAÍS que tiraram computadores e documentos do prédio por medo de uma iminente batida policial. “Kitty Monterrey deve deixar a Nicarágua e Mauricio Díaz, membro do partido e ex-diplomata, foi impedido de sair do país e teve seu passaporte retirado”, disse a fonte.
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A investida contra o ACxL, partido fundado pelo ex-banqueiro e ex-candidato à presidência Eduardo Montealegre, começou na terça-feira. Naquele dia, o Ministério Público do regime inabilitou e acusou a candidata à vice-presidência pelo partido, a jovem e ex-rainha da beleza Berenice Quezada, de fazer “apologia ao crime e incitação ao ódio” em declarações.
Quezada estava na chapa presidencial de Óscar Sobalvarro, vice-presidente do CxL; um homem que nos anos oitenta foi chefiou a contrarrevolução, a guerrilha financiada por Washington para derrubar o Governo sandinista. Tanto Sobalvarro quanto Quezada eram os candidatos emergentes do CxL, escolhidos unilateralmente pelo partido, depois que todos os pré-candidatos oposicionistas foram detidos pelo regime de Ortega-Murillo, incluindo três dos seus membros.
“Os Cidadãos pela Liberdade sairão vitoriosos desta e de todas as que vierem, porque nosso compromisso com uma Nicarágua em paz, liberdade e democracia não pode ser cancelado. Tiveram medo de nós!”, disse brevemente Sobalvarro em sua conta no Twitter. Por enquanto, o silêncio impera na formação que perdeu sua principal dirigente.
O cancelamento total do ACxL ocorreu no mesmo dia em que o Senado dos Estados Unidos aprovou a Lei Renacer, que amplia o leque de sanções contra o regime de Ortega-Murillo e os funcionários do Governo ligados ao esfacelamento democrático do país, à perseguição de dissidentes, às violações dos direitos humanos e, mais recentemente, ao fechamento de uma eleição transparente e competitiva.
O ponto principal da lei (formalmente chamada de Lei de Fortalecimento da Adesão da Nicarágua às Condições para a Reforma Eleitoral) é rever a participação da Nicarágua no Acordo de Livre Comércio entre os Estados Unidos, a República Dominicana e a América Central (DR-Cafta). Trata-se de um acordo fundamental para a Nicarágua, cujo principal parceiro comercial é justamente os Estados Unidos.
Um estado de terror impera na Nicarágua, especialmente entre políticos oposicionistas, ativistas e analistas, que já não querem falar com os jornalistas por medo de serem presos. “O caminho que resta a Ortega e Murillo é o da ilegitimidade. Ou seja, espera-se que a ‘vitória’ do sandinismo, entre aspas, não seja validada, já que seu resultado será produto de eleições fraudulentas e sem condições, com a oposição perseguida e presa. No plano internacional, é um isolamento absoluto”, disse um especialista em direito internacional que, por razões de segurança, pediu para manter o anonimato.
Enrique Sáenz, ex-deputado da oposição exilado na Costa Rica, afirma que a permanência dos Ortega-Murillo impõe “um custo imenso ao país”. “Enquanto Ortega estiver no poder, os nicaraguenses não terão oportunidade de se superar. O custo de vida está subindo, de acordo com números oficiais. Não haverá esperança diante da ditadura e isso se traduz em sofrimento”, alerta.
Integrantes do Conselho Político da Unidade Nacional Azul e Branco, o outro bloco de oposição defenestrado por Ortega, propõe que os próximos passos da oposição deveriam ser ignorar um processo eleitoral feito sob medida para a ditadura. “A não participação, o repúdio ao processo eleitoral, o pedido de legitimidade absoluta do processo é o caminho para derrubar a ditadura, é o caminho para a liberdade, para a justiça sem impunidade e para a democracia”, afirmou o movimento.
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