Nova York para os nova-iorquinos

Em sua história acidentada, nenhuma catástrofe tinha transformado a cidade tanto quanto a pandemia. Os habitantes encaram este verão com um misto de estranheza e alívio pela ausência de turistas

A Estátua da Liberdade pouco depois da reabertura, no final de junho.CARLO ALLEGRI (Reuters)
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Desde que foram detectados os primeiros sinais que alertavam para a chegada do coronavírus a Nova York, nada foi como antes. Em sua história acidentada, nenhuma catástrofe tinha transformado o caráter da cidade como fez a pandemia. Nas estradas de acesso aos cinco condados, as placas eletrônicas transmitem uma mensagem única: “We’re New York Tough”. Nova York proclama assim sua vontade de resistir, mas não é possível esconder que há medo, que a ferida é muito profunda e não é fácil saber quando cicatrizará, se é que conseguirá fazê-lo. Talvez na hora de sua morte, tantas vezes anunciada, terá conseguido. Acostumada, sim, a todo tipo de desastres, os mais traumáticos foram os atentados de 11 de setembro de 2001, a cidade nunca havia mudado como agora. De um bairro para outro a situação varia, dependendo de fatores como poder aquisitivo ou etnia. O vírus se alastrou com uma violência incomum entre os pobres, os negros e os latinos. Aos primeiros sinais de perigo, quase meio milhão de nova-iorquinos abastados se apressaram em sair dali, buscando refúgio em suas mansões em Long Island. Como resultado, certas áreas da cidade, como Tribeca, Battery Park ou Wall Street, se tornaram literalmente zonas fantasma.

Balsa retorna a Manhattan vinda da Estátua da Liberdade, na terça-feira, com quase nenhum turista.MIKE SEGAR (Reuters)

Se pensarmos em Nova York como a soma de lugares emblemáticos que o imaginário coletivo universal sempre associou à cidade, o convite para percorrê-la nestes dias exigiria consultar um guia presidido pelo signo do Apocalipse. O metrô, provavelmente o mais decrépito do mundo, ocuparia um lugar de destaque nele. Com apenas 20% de seus usuários habituais, o Hades [deus grego do mundo dos mortos] do transporte nova-iorquino está infestado por ratazanas gigantes que vagam indiferentes por suas plataformas e corredores. A chegada da covid-19 acrescentou um detalhe sinistro: estimuladas pela fome por causa do desaparecimento das sobras das quais se alimentavam, as pestes se tornaram perigosamente agressivas. Na superfície, o panorama é doloroso de outra maneira: as filas de indigentes diante das cozinhas beneficentes aumentaram dramaticamente nos bairros mais pobres. São parte de um panorama dominado pelo desemprego, pelas demissões e pelas ameaças de despejo. O estímulo de 600 dólares (cerca de 3.235 reais) semanais do Governo federal, que mal cobria as despesas básicas, deixou de ser recebido no final de julho, sem perspectiva de novas ajudas. A incerteza de boa parte da população não pode ser maior.

Não há turistas. Os lugares visitados diariamente por multidões estão fechados, dos teatros da Broadway a museus como o MoMA, o Whitney ou o Metropolitan, bem como salas de concerto como o Apollo Theater no Harlem, o Carnegie Hall e o Lincoln Center. Caracterizar Times Square como um deserto é um oximoro, mas a expressão não poderia ser mais exata: o mar de luzes e telas da rua 42 continua emitindo sinais, só que não há ninguém para prestar atenção. Não menos insólita é a imagem da Grand Central. Suas 107 plataformas quase não recebem viajantes. O majestoso hall da estação é outro deserto. Da infinidade de ícones que constituem a marca registrada de Nova York, sem dúvida o mais representativo é a Estátua da Liberdade. Quando foi finalmente reaberta aos visitantes, há duas semanas, as balsas que partiam para a ilha onde fica a estátua estavam vazias. Também se pode subir ao observatório do 102º andar do Empire State Building, mas como acontece com Lady Liberty, há poucos interessados.

O golpe desferido contra a economia pela ausência de turistas é devastador, embora tenha efeitos colaterais que os nova-iorquinos encaram com uma mistura de estranheza e alívio. De repente, os habitantes de Manhattan entenderam até que ponto a cidade que acreditavam deles não o era. É instrutivo contemplar a aberração urbanística dos Hudson Yards, ou fazer um passeio pela via ajardinada de High Line, ou observar, na margem do rio, Diller Island, ainda a meio erguer. Suas pétalas de cimento, destinadas a sustentar um parque visionário, parecem um cenário de pesadelo. A sensação adquire nuances impressionantes se o lugar que se decide visitar nestes dias for o Marco Zero.

Os dias da peste foram regidos por seu próprio calendário, marcado pela coincidência com outros acontecimentos de envergadura. Sem dúvida, o de maior relevo foi a explosão de furor coletivo que se seguiu à morte de George Floyd nas mãos da polícia, um déjà vu que evidenciou mais uma vez como o racismo permanece profundamente enraizado na sociedade norte-americana. A morte de Floyd desencadeou uma onda de protestos com diferentes graus de violência em todo o país, com Nova York como um de seus epicentros. Durante várias semanas, um dos principais eixos do protesto correu diariamente ao longo da Broadway, vindo das pontes de Manhattan South até chegar à Union Square, ponto de encontro histórico de todo tipo de causas políticas. Os protestos pacíficos foram empanados por cenas de saques extremamente violentas, cujo principal alvo foram as lojas de marcas de luxo do SoHo, Madison Avenue e Quinta Avenida. Depois do saque, na manhã do dia seguinte, apareceram equipes de trabalhadores lacrando as fachadas e vitrines dos estabelecimentos com pranchas de madeira. Em dias sucessivos, as pranchas foram sendo cobertas por grafites de caráter político, alguns de considerável valor artístico.

Quando, cedendo à pressão dos manifestantes, foram tomadas medidas para reduzir o orçamento da polícia, surgiu um sentimento de insegurança em certos setores da população que levou muitos a adquirir armas. Os assassinatos e os roubos aumentaram, embora não nas proporções mencionadas pela imprensa sensacionalista local, que estimou o aumento da criminalidade em torno de 280%.

Recuperar a firmeza

Nova York já superou o momento que a estigmatizou como epicentro da pandemia em escala global. Ficaram para trás cenas como a escavação de fossas comuns em Hart Island ou a instalação de hospitais de campanha no Central Park. Em linhas gerais, pode-se dizer que a cidade está lentamente recuperando sua firmeza, embora muito aos poucos. Algumas avenidas no Brooklyn ou no Harlem estão lotadas. As bicicletas passam como exalações pela Ponte do Brooklyn, atendendo a encomendas urgentes, mas não há pedestres ociosos. Nas áreas industriais de Long Island City e do Queens, o trabalho está se aproximando do normal. Bandas de jazz espontâneas voltam a se reunir em Washington Square, como fazem há décadas. Existem sinais de vida no Central Park, apesar da suspensão das atividades que dão caráter à temporada de verão, como as apresentações gratuitas de Shakespeare ou da Metropolitan Opera House. Há agitação nas ruas do Harlem, onde apareceu um grafite gigantesco que corre ao longo do asfalto que cobre todo um trecho da Avenida X Malcolm, com o lema Black Lives Matter pintado em enormes letras verdes, um dos vários que apareceram na cidade.

Mas a questão de se Nova York será capaz de se recuperar desta vez, como sempre fez até agora, persiste. Empresas comerciais de importância internacional abandonaram definitivamente o barco, entre elas, para citar um exemplo, a Victoria Secret, que segundo o The New York Times deixou de pagar o aluguel das instalações da Harald Square, que chegava a quase um milhão de dólares por mês. É um sintoma de que a impossibilidade de voltar ao ponto onde se estava pode ser algo mais do que uma mera hipótese.

Funcionário limpa mesa em uma calçada quase vazia em Times Square, no final de junho.CARLO ALLEGRI (Reuters)


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