Renúncia da possível sucessora de Merkel abala política alemã
Annegret Kramp-Karrenbauer, líder dos conservadores alemães, ficou muito enfraquecida após o rompimento do ‘cordão sanitário’ contra a extrema direita na Turíngia
A ruptura do cordão sanitário contra a extrema direita na Turíngia abalou os alicerces da política alemã. Para Annegret Kramp-Karrenbauer, presidenta da União Democrata Cristã (CDU) e favorita na corrida pela sucessão da chanceler (primeira-ministra) Angela Merkel, representou um golpe mortal. Kramp-Karrenbauer renunciou à sua candidatura como futura chanceler, deixando aberta a corrida pela sucessão sem que haja no momento um claro candidato alternativo. AKK, como é conhecida na Alemanha, renunciará também à presidência do partido assim que os conservadores escolherem um novo candidato, ao longo deste ano, mas continuará sendo ministra da Defesa até o final da legislatura, em 2021.
A renúncia da líder da centro-direita alemã abre um período de instabilidade política na maior economia europeia, coincidindo com a reta final da era Merkel. O plano de sucessão ordenado e sem sobressaltos desenhado pela chanceler, cujo quarto e último mandato está previsto para terminar em 2021, voou pelos ares. Abre-se a partir de hoje a corrida pela chancelaria na centro-direita.
Merkel disse nesta segunda-feira lamentar a renúncia de Kramp-Karrenbauer. “Respeito a decisão, mas a lamento enormemente”, declarou a chanceler. “Posso imaginar que não foi uma decisão fácil para ela, e agradeço-lhe por sua disposição em comandar o processo de escolha do seu sucessor”, acrescentou Merkel a jornalistas numa entrevista coletiva por ocasião da visita do primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán.
Esta crise política começou quando o Parlamento da Turíngia, um Estado no centro-leste alemão, elegeu um candidato liberal como premiê estadual com os votos da ultradireita e também da CDU. Era a primeira vez que um candidato chegava ao cargo graças aos votos dos radicais, o que marcou uma fratura inédita no até então firme cordão sanitário alemão. A CDU da Turíngia votou contra as diretrizes do partido em Berlim e as ordens da própria Kramp-Karrenbauer, que ficou desautorizada.
Ao final, foi a chanceler Merkel que, de Pretória, a 8.800 quilômetros de distância, se viu obrigada a intervir para pôr ordem no partido e obrigar a CDU regional a reverter a eleição do candidato liberal e procurar uma saída para a crise sem contar com o apoio direto ou indireto da ultradireita. “Defendo uma CDU que rejeite qualquer tipo de cooperação direta ou indireta com o [partido ultradireitista] AfD”, reiterou Kramp-Karrenbauer nesta segunda-feira a jornalistas.
A dirigente afirmou que meditou por muito tempo antes de tomar a decisão. O fato é que desde que assumiu a presidência do partido, há pouco mais de um ano, as críticas mais ou menos veladas contra AKK de dentro da agremiação não cessaram, e sua liderança foi questionada sobretudo pela ala mais direitista da CDU.
As reações políticas se sucederam em profusão na segunda-feira. O partido social-democrata, sócio na coalizão no Governo, considerou os acontecimentos “muito preocupantes”, nas palavras de seu colíder, Norbert Walters-Borjan, que pediu à CDU que esclareça qual relação deseja manter com os extremistas de direita. A ultradireita, por sua vez, esfregou as mãos perante uma queda que considera em parte mérito seu. “Não foi capaz de implementar a política de seu partido de excluir o nosso partido democrático, e isso é bom”, comemorou Alexander Gauland, presidente honorário da AfD. “É completamente absurdo e pouco realista não querer cooperar com a AfD em longo prazo.”
Annalena Baerbock, colíder dos Verdes, o partido-estrela da política alemã, afirmou se tratar de “uma situação muito difícil para o país. Preocupa-me o crescente vazio de poder. A CDU deve esclarecer como pensa garantir um Governo estável nestas circunstâncias”. E acrescentou: “Os partidos não devem agir agora de forma tática, e sim conseguir que o corta-fogo contra a AfD se mantenha. A instável situação da Turíngia não deve contagiar o resto do país”.
Kramp-Karrenbauer, de 57 anos e atual ministra de Defesa, foi escolhida para presidir o partido num congresso realizado em dezembro de 2018 em Hamburgo. Sua candidatura centrista e continuísta se impôs por uma margem mínima sobre a corrente mais conservadora e favorável a uma ruptura. Sua saída complica a sucessão de Merkel, e representa um golpe para a própria chanceler, que não ocultava sua preferência por Kramp-Karrenbauer frente a outros candidatos. Por outro lado, é uma vitória para os rivais de AKK e também para os adversários de Merkel e para a ala mais conservadora do partido, que considera que a chanceler “social-democratizou” a CDU, dando asas à extrema direita. “AKK-K.O.!”, titulava com certo regozijo em sua edição digital o jornal sensacionalista e conservador Bild, o mais lido da Alemanha.
A corrida pela sucessão na CDU
A renúncia de Annegret Kramp-Karrenbauer reabre a corrida pela presidência da CDU e a candidatura à chancelaria para as eleições de 2021, nas quais Angela Merkel não concorrerá. Por enquanto, são quatro os dirigentes que se destacam na disputa. Resta ver que posição adotarão os aspirantes sobre uma possível cooperação com o ultradireitista AfD.
Friedrich Merz, de 64 anos, empresário e representante da linha mais conservadora da CDU, foi derrotado por AKK no congresso partidário de dezembro de 2018. Desde então, manteve sua presença pública nos arredores do partido, disposto a voltar. Na semana passada, durante a crise da Turíngia que desembocou na demissão de AKK, Merz anunciou que deixava seu cargo no maior fundo de investimentos do mundo, o Black Rock, para se dedicar integralmente à política. Afastado pela chanceler em um conflito interno há 16 anos, Merz é um político loquaz e transmite segurança em si mesmo, embora nesta segunda-feira tenha reagido com prudência e dito ser preferível “refletir” a falar precipitadamente.
Jens Spahn, de 39 anos, é o jovem e proativo ministro da Saúde do atual Governo alemão e representante também da ala mais à direita do partido. Destacou-se por criticar a decisão da chanceler de abrir em 2015 as fronteiras aos refugiados sírios retidos na Hungria. A chanceler o incluiu no Governo como um aceno aos mais conservadores na CDU. Católico e casado com um jornalista, é considerado um político da Alemanha rural e cético quanto à globalização.
Armin Laschet, de 58 anos, situa-se mais ao centro do partido conservador e já figurou nas bolsas de aposta como possível aspirante em 2018, mas afinal decidiu não se apresentar na disputa. Político próximo a Merkel, é ministro-presidente da Renânia do Norte-Westfália, um bastião tradicionalmente social-democrata e o Estado federal mais populoso da Alemanha. Seria um candidato de continuidade e tem alertado contra uma direitização da CDU. Durante o escândalo da Turíngia, na linha defendida por Kramp-Karrenbauer e a chanceler, afirmou que nenhum dirigente, “nem por acaso”, pode se deixar eleger com os votos da ultradireita.
Markus Söder, de 53 anos, é o líder dos conservadores bávaros (CSU), o partido-satélite da CDU de Merkel, e primeiro-ministro da Baviera. É incluído por vários analistas entre os possíveis aspirantes, embora ele próprio rejeite essas especulações. Defensor dos valores tradicionais, desde que assumiu o Governo da Baviera, nas eleições regionais do final de 2018, procurou uma imagem mais centrista e de defesa do meio ambiente.
Ralph Brinkhaus, de 51 anos, é o líder da bancada da CDU/CSU desde 2018, quando seus colegas o elegeram em detrimento de um protegido de Merkel. Embora uma candidatura a chanceler não pareça estar no seu horizonte imediato, seu trabalho parlamentar lhe permitiu ganhar pontos nos últimos tempos.