Walter Mercado, astrólogo, milionário e ícone ‘queer’ que se atreveu a tudo quando ninguém ousava
Documentário ‘Ligue djá’, na Netflix, relembra o porto-riquenho conhecido por suas túnicas e extravagâncias, que se tornou celebridade em vários países, Brasil incluído, ao romper barreiras nos anos setenta
“Se você é diferente, continue sendo. Não se preocupe. Ser diferente é um dom. Ser normal é o comum”, disse Aída María Salinas Vidal a seu filho Walter (Ponce, Porto Rico, 1932). O menino não se parecia aos outros garotos de sua idade. Nem compartilhava os interesses de seu irmão Henry ou de seu pai José María Mercado. Não gostava de caçar, praticar esporte ou plantar cana-de-açúcar. Preferia passar o tempo lendo, tocando piano com sua mãe, dançando ou interpretando peças de teatro. A todas essas atividades, incomuns para um menino nascido na localidade porto-riquenha de Ponce durante os anos 1930, seria adicionada outra, que acabou sendo realmente extraordinária.
Um dia, um pássaro caiu agonizante no quintal da casa de sua família. Walter o pegou nas mãos, começou a rezar por ele, deu-lhe palavras de encorajamento, soprou em seu bico e, como se com isso tivesse lhe dado o sopro da vida do Gênesis, a ave abriu as asas e alçou voo. O fato foi presenciado por uma vizinha e não demorou muito tempo até que a casa da família Mercado se enchesse de pessoas que desejavam tocar e ser tocadas pela criança que, a partir de então, começaria a ser conhecida como “Walter dos Milagres”.
Apesar de sua fama de realizar curas e de seu interesse pelo horóscopo, tarô, religião católica, sincretismo afro-caribenho e budismo, o Walter adolescente preferiu deixar a magia de lado e se dedicar ao mundo do espetáculo. Alto, com boa pinta e boa presença, o jovem se transformou em um popular ator de novelas e teatro. De fato, foi enquanto promovia a obra Tríptico del Amor, del Dolor y de la Muerte (“tríptico do amor, da dor e da morte”), de Clara Cuevas, em um programa de televisão, que sua vida mudou para sempre.
Corria o ano de 1969. Walter Mercado foi ao programa do apresentador Elin Ortiz na rede Telemundo usando a roupa com que aparecia nessa obra: maquiado como um príncipe hindu, com uma túnica branca e bijuterias. No entanto, ao começar a entrevista, Ortiz deixou de lado tudo que se referia ao Tríptico e começou a perguntar a Mercado sobre o zodíaco. O ator aproveitou para fazer uma análise de todos os signos com a eloquência, extroversão e histrionismo que o fariam popular. Ao acabar sua análise, a central telefônica estava congestionada com ligações dos entusiasmados telespectadores. Logo depois, um dos diretores da TV se apresentou no estúdio e, no dia seguinte, Walter Mercado ganhou um espaço diário de 15 minutos no programa de Elin Ortiz. Não precisou de mais nada. Três meses depois, estrearia seu próprio espaço de uma hora de duração: Walter, las Estrellas y Usted (“Walter, as estrelas e você”).
Paz e muito amor
Depois do sucesso dessa primeira aparição, Walter Mercado decidiu explorar essa diferença de que sua mãe falava. Sempre que aparecia na televisão, usava túnicas chamativas, bastante maquiagem e um penteado volumoso que se mantinha de pé graças à laquê e às custas da camada de ozônio. A todos esses detalhes, que lhe davam um aspecto andrógino, somava-se sua forma sugestiva de mover as mãos, aperfeiçoada na época em que fazia dança. Embora o conjunto pudesse lembrar o pianista Liberace, o astrólogo era tão exótico que dava a impressão de que conhecia tanto sobre os astros porque vinha realmente de outro planeta.
No entanto, mais do que a extravagância de sua proposta, o que realmente encantou o público porto-riquenho foi sua positividade, humor e bondade na hora de apresentar os acontecimentos dos diferentes signos. Diferentemente de outros ho, Mercado não falava de catástrofes ou desgraças, mas de momentos propícios, de oportunidades, de desafios para melhorar deixando a um lado os medos e as ameaças. Além disso, cunhou uma frase otimista de despedida que passou a fazer parte da cultura popular latina: “Que Deus abençoe todos vocês hoje, amanhã e sempre. E que sempre recebam de mim paz, muita paz, mas principalmente muito, muito, muito… amor”.
Essa popularidade aumentou quando a comunidade gay passou a ver Mercado como uma referência que demonstrava que era possível fazer sucesso no mundo da televisão sem precisar esconder a condição sexual. Uma conclusão baseada mais em pequenas indicações, mensagens veladas e códigos compartilhados do que em provas confiáveis pois, apesar de exibir tanta naturalidade na tela, Mercado sempre evitou falar de sua sexualidade. Uma negativa que respondia não apenas ao fato de que esse aspecto pertencia à sua vida privada, como também ao risco que teria significado para sua carreira afirmar-se homossexual na sociedade porto-riquenha dos anos setenta, oitenta e noventa, que não era precisamente gay friendly.
“Porto Rico era uma pequena ilha e eu estava cem anos à frente”, lembra o astrólogo em um momento de Ligue djá: o lendário Walter Mercado, documentário da Netflix dirigido por Cristina Constantini e Kareem Tabsch, que tiveram acesso à casa do astrólogo ― onde filmaram detalhes íntimos, como cantos decorados com retratos do Oscar Wilde e livros com títulos como Gay World. Pistas suficientes para não precisar dar mais explicações e que trazem à memória a resposta que o cantor Juan Gabriel deu a um jornalista do programa Primer Impacto, da rede Univisión, quando este lhe perguntou sobre sua sexualidade: “O que se vê não se pergunta, meu filho”.
Mercado internacional
Seria precisamente na Univisión e no Primer Impacto que Mercado alcançaria sua fama internacional. Para isso, foi necessário que entrasse em cena Guillermo “Bill” Bakula, um impulsivo jovem que, depois de ver o sucesso do astrólogo, apresentou-se em seu consultório particular e pediu que visse as cartas. No final da sessão, Bakula mostrou ao astrólogo esboços de cenários que tinha pensado para seus programas, falou-lhe sobre novas possibilidades de negócios e, finalmente, ofereceu-se como representante. Apesar do aspecto inusitado da reunião, Walter Mercado aceitou.
Com a ajuda de Bakula, a figura do astrólogo ganhou nova dimensão. Embora seu público fosse principalmente latino, suas previsões podiam ser vistas em todos os Estados Unidos através da Univisión, seus livros foram traduzidos para o inglês, português e russo, ele gravou discos e, quando apareceram nos anos noventa as linhas telefônicas com tarifação especial, foi um dos primeiros a lançar um serviço de consultas por telefone, que chegou a ter quatro mil videntes atendendo às ligações e meio milhão de clientes fixos. Até mesmo no Brasil o astrológo ficou conhecido pelos comerciais de seu serviço de consulta telefônica, nos quais utilizava o bordão ‘Ligue djá!.
Em meados dos anos noventa, Walter Mercado era uma máquina de fazer dinheiro e, embora houvesse riqueza para todos, Bill Bakula não achou suficiente. Em 1995, o representante lhe propôs um novo contrato para administrar sua carreira profissional. Depois de sua assinatura, uma empresa administrada por Bakula passaria a ser a proprietária dos direitos sobre as aparições de Mercado na TV, assim como dos lucros de sua produção editorial, dos de qualquer outro projeto do qual participasse e até mesmo de seu nome ― que, a essa altura, já era uma marca comercial consolidada e de grande valor.
Como se essas condições não fossem suficientemente drásticas, o contrato estabelecia que tudo isso valia para a vida toda e, como correspondia a um personagem vinculado às estrelas, para todo o universo. O entorno de Walter Mercado só teve noção do abuso a que ele tinha sido submetido quando os pagamentos que Bakula estava obrigado a realizar em virtude do acordo começaram a atrasar. Embora os advogados de Mercado tentassem renegociar as condições, Bakula se negou, e o astrólogo processou o representante na Justiça. No entanto, antes de emitir um veredicto, o juiz determinou, de forma cautelar, que Walter Mercado não podia aparecer na mídia com seu nome. O astrólogo cumpriu a determinação, sem suspeitar que a lentidão da Justiça faria com que essa medida temporária se tornasse praticamente definitiva.
Peça de museu
A disputa judicial se prolongou durante anos. Embora a sentença acabasse sendo favorável a Walter Mercado, o processo o deixou esgotado, com sequelas físicas e emocionais e com uma considerável perda econômica devido aos gastos com sua defesa, que teve de ser feita não só em tribunais dos EUA, como também em países como México, Porto Rico e Argentina. Embora tenha tentado retornar à televisão, o astrólogo entendeu que seu tempo tinha passado e decidiu se aposentar para viver tranquilo em sua casa de Porto Rico.
Durante anos, muitas pessoas se perguntaram por onde andava Walter Mercado. Uma delas foi Lin-Manuel Miranda, que, quando criança, via Mercado na televisão ao lado de sua avó porto-riquenha. Para o ator e criador do musical Hamilton, a resposta a essa pergunta veio em janeiro de 2019, quando os responsáveis por Ligue djá organizaram um encontro entre o dramaturgo e o astrólogo, que o presenteou com sua carta astral.
Em agosto do mesmo ano, Walter Mercado voltaria a aparecer em público depois de anos de afastamento, por ocasião da exposição Mucho, Mucho Amor: 50 Years of Walter Mercado (“muito, muito amor: 50 anos de Walter Mercado”), organizada pelo History Miami Museum. A mostra percorria, através de suas roupas, livros, joias, vídeos, pôsteres, esculturas, imagens promocionais e fotos de família, a vida do astrólogo. O evento foi coberto por diversos veículos de comunicação e a festa de abertura permitiu que Mercado se reencontrasse com várias gerações de fãs.
Ali estavam os avós latinos que imigraram para os Estados Unidos, seus filhos e até seus netos, para os quais o astrólogo é um ícone queer. Apesar de seus problemas de saúde e de mal poder caminhar, Mercado não quis perder o encontro e deu o melhor de si para atender os jornalistas e se apresentar para seus convidados como nos velhos tempos. Precedido por um grupo de dançarinos com toga, entrou na sala sentado em um trono dourado, cumprimentou o público e tirou fotos com todos que pediram.
Poucos meses depois, em 2 de novembro de 2019, Mercado morreu em San Juan de Porto Rico, aos 87 anos. Foi velado em uma funerária local, vestido com um terno de veludo brilhante cuja cor mudava de roxo para azul-marinho e com suas habituais joias. No dia de seu enterro, as autoridades decretaram luto e as bandeiras de todos os edifícios públicos foram colocadas a meio-mastro, em homenagem a um de seus cidadãos mais destacados, que tornou Porto Rico conhecido ao redor do mundo muito antes que o cantor Bad Bunny nascesse