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Dostoiévski e o peso do mundo

Há 200 anos nascia em Moscou o escritor que se dedicou obsessivamente a explorar as comoventes contradições da condição moderna

José Andrés Rojo
Dostoievski
Dostoiévski, em um retrato de Vasili Perov de 1872.

Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski nasceu há 200 anos em Moscou, e sua obra, desproporcional e marcada pela comovente profundidade das grandes palavras, continua ao alcance dos leitores de uma sociedade como a atual, descrente, longe da transcendência, volátil. Têm hoje relevância os temas que um dia obcecaram o escritor russo? Continuam vigentes seu estilo fogoso e essa ânsia de colocar em cena os assuntos mais diversos, vistos sempre de perspectivas diferentes, discutidos, espremidos ao máximo? A culpa, os açoites de uma consciência que não encontra lugar num mundo que se transforma, as velhas perguntas pelo sentido da vida, os infindáveis flagelos da injustiça, a tentação do jogo e da bebida e de se perder, o niilismo: todos esses imponentes assuntos foram encarnados por Dostoiévski em distintos personagens que, pouco a pouco, ganharam importância pela enorme tensão das questões às quais eram arrastados, pelo peso do mundo, que os confrontava com suas contradições, que os empurrava em direção ao mal ou exigia que procurassem algum caminho de salvação. “Agora o homem ama a vida porque ama a dor e o terror, e aí está todo o engano”, diz um personagem de Os Demônios. “Agora o homem não é ainda o que será. Haverá um homem novo, feliz e orgulhoso. Para esse homem, será igual viver ou não viver; esse será o homem novo. Aquele que conquistar a dor e o terror será, por isso mesmo, Deus.”

Viver ou não viver, ter a coragem suficiente para tirar a própria vida, conquistar a dor: por esse terreno Dostoiévski transitava. Em 22 de dezembro de 1849, ele esteve a ponto de ser colocado diante de um pelotão de fuzilamento, e faltava pouco para que que deixasse este mundo, quando chegou o indulto que o czar Nicolau I finalmente concedeu a um grupo de prisioneiros condenados à morte. O escritor fora detido meses antes com outros intelectuais do Círculo Petrashevski: compartilhavam ideias reformistas para acabar com as injustiças na Rússia e estavam próximos das ideias dos socialistas utópicos. Dostoiévski foi enviado a um presídio na Sibéria, em Omsk, para passar cinco anos, e depois precisou servir outros cinco numa fortaleza do Cazaquistão. “Chegavam ao presídio aqueles que, em liberdade, tinham perdido todas as medidas e ultrapassado todos os limites, a tal ponto que davam a impressão de terem acabado cometendo seus crimes, não por vontade própria, mas sem saber por quê, numa espécie de delírio ou de embriaguez; muitas vezes, por uma vaidade muito elevada”, escreveu ele em Memórias da Casa dos Mortos. Quando o condenaram, perdeu seu título de nobre, seu posto militar de tenente de engenheiros e seus direitos civis. De volta daquele inferno, abandonou sua ânsia de mudar tudo, tornou-se conservador, refugiou-se na religião e na velha Rússia.

Nascera em 11 de novembro de 1821. Seu pai era médico, sua mãe lhe inoculou o gosto pela leitura. Teve uma excelente formação em São Petersburgo, mas não se interessou pela disciplina militar e acabou se debruçando sobre a literatura. Seu primeiro romance, Gente Pobre, foi lançado em 1846 e teve certo sucesso, de modo que ele continuou publicando e revelou já na época seu interesse pelos conflitos psicológicos, o olhar social, a reflexão filosófica. Gastava mais do que podia e se endividava com frequência. A ferida profunda que seu exílio na Sibéria provocou foi uma das muitas que ele teve ao longo da vida. Casou-se em 1857 com Anna Dmitrievna quando era apenas um soldado raso do sétimo batalhão em Semipalatinsk. Pouco depois, recebeu o diagnóstico de epilepsia como doença crônica. Regressou finalmente a São Petersburgo na véspera de 1860. Alguns anos mais tarde, quando seu casamento dava sinais de desgaste, viajou sozinho pela Europa. Descobriu o jogo, perdeu grandes quantias na roleta e se apaixonou por Apolinaria Suslova, uma mulher muito mais jovem que ele, com quem teve uma relação explosiva. Em 1863, já em casa, perdeu sua primeira mulher. Voltou a se casar em 1867 com Anna Grigorievna, a quem ditou O Jogador, o romance que resgatava sua tumultuada paixão anterior. Ainda seria atingido por outras desgraças: perdeu um filho de seu primeiro casamento, uma filha do segundo, e seu irmão Mikhail morreu em 1864.

Foi esse homem dilacerado e endurecido por tantas penalidades que originaria, a partir desse momento, suas maiores obras, escritas muitas vezes de forma desajeitada, arrastado por uma poderosa torrente que o empurrava a mergulhar nos subterrâneos da consciência e que o levava a fazer explodir os dilemas e medos do ser humano. Crime e Castigo, O Idiota, Os Demônios e Os Irmãos Karamázov são romances com personagens que se sentem oprimidos pelo enorme peso de serem conscientes do que significa viver. Dostoiévski morreu em 9 de fevereiro de 1881. Agora, por ocasião dos 200 anos de seu nascimento, apareceram alguns títulos que recuperam sua obra ou que a iluminam. É o caso da biografia Dostoiévski, do romeno Virgil Tanase, que soube restituir com tensão e eficácia as peripécias do escritor e as circunstâncias que alimentaram suas obras. Assim também o fazem Tamara Djermanovic em sua aproximação pessoal, resumindo em El Universo de Dostoiévski (O universo de Dostoiévski) uma longa relação com o escritor, e Nicolás Caparrós, em Dostoievski en Las Mazmorras del Espíritu (As masmorras do espírito). A editora espanhola Galaxia Gutenberg publicou o segundo volume de sua obra completa, que inclui O Sonho do Tio, Aldeia de Stepánchikovo e Seus Habitantes, Humilhados e Ofendidos e Memórias da Casa dos Mortos, todos eles escritos ou concebidos na fase final de seu longo desterro. Já a editora espanhola Páginas de Espuma apresentou as mais de 2.000 páginas de Diário de um Escritor.

Sem meias palavras

Não tem nada a ver com um diário. São artigos de jornal que ele começou a escrever sob esse rótulo porque neles falaria, segundo suas palavras, “para mim mesmo e por puro prazer (...) de tudo o que me ocorrer, ou do que me fizer pensar.” Paul Viejo, responsável pela edição, explica na nota que prefacia os dois volumes, que a equipe acabou reunindo todas as peças jornalísticas de Dostoiévski, não apenas as que em três momentos diferentes ele publicou sob esse título: em 1873, em 1876 —como livreto mensal editado, redigido e financiado pelo próprio escritor— e em 1891. É a sua última época, e Dostoiévski se pronuncia a respeito de tudo, do menor detalhe à questão mais relevante, com a maior liberdade, sem meias palavras e questionando sempre. Em O Jogador, um cavalheiro britânico diz ao protagonista durante uma conversa: “Somente os russos são capazes de reunir tantas contradições ao mesmo tempo. De fato, os homens gostam de ver seus melhores amigos humilhados diante de si. A amizade se baseia, em grande parte, na humilhação. É uma velha verdade conhecida por todas as pessoas inteligentes no mundo.” Dostoiévski completa hoje 200 anos, e quem sabe observações como essa ainda possam ter eco numa sociedade pacata como a atual, que se afasta das nuances e quer tudo em branco e preto.

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