Séries ‘true crime’ também têm consequências reais

Onda de documentários narrativos sobre fatos polêmicos oferece novas pistas à Justiça e leva à reabertura de processos, mas também joga os holofotes novamente sobre a dor das vítimas e seus familiares

Robert Durst é levado à prisão de Orleans Parish em 1º de outubro de 2019. Em vídeo, trailer da série documental ‘The Jinx’.

Promotores e policiais também veem televisão. Como todo mundo. Mas, de um tempo para cá, talvez estejam prestando mais atenção. Porque, além de entretenimento, podem ganhar um presente: uma pista nova para investigar. Em 5 de março de 2020, na primeira audiência do julgamento do milionário Robert Durst, acusado pelo homicídio de sua amiga Susan Berman, foi exibido um trecho de The Jinx. A detenção deles, afinal de contas, se baseou naquele “matei todos, claro”, que ele pronunci...

Promotores e policiais também veem televisão. Como todo mundo. Mas, de um tempo para cá, talvez estejam prestando mais atenção. Porque, além de entretenimento, podem ganhar um presente: uma pista nova para investigar. Em 5 de março de 2020, na primeira audiência do julgamento do milionário Robert Durst, acusado pelo homicídio de sua amiga Susan Berman, foi exibido um trecho de The Jinx. A detenção deles, afinal de contas, se baseou naquele “matei todos, claro”, que ele pronunciava ao final da série ―embora, segundo seus advogados, a frase tenha sido manipulada por Andrew Jarecki, criador do documentário da HBO.

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O último episódio de The Jinx foi ao ar em março de 2015. E a vida de Durst mudou. Naquele mesmo ano, Making a murderer, exibida pela Netflix, mostrou ao mundo o discutível processo que levou à prisão de Steven Avery e seu sobrinho Brendan Dassey pelo assassinato de Teresa Halbach. Houve tamanha repercussão que até o presidente Barack Obama se viu obrigado a esclarecer por que não podia indultar Avery. Desde então, o sucesso das chamadas séries de true crime disparou. E, com ele, também suas consequências, tão reais quanto os fatos narrados. A Justiça às vezes descobre falhas ou indícios e retoma casos arquivados. Mas as velhas cicatrizes das vítimas também são reabertas, frequentemente sem que tenham autorizado.

“Bem contadas, estas séries são ferramentas poderosas e benéficas. Mas, ao mesmo tempo, é muito perigoso ir atrás de crimes midiáticos sem uma razão forte”, reflete Justin Webster, diretor do documentário Eu vou ser assassinado e das séries Muerte en León e Nisman: el fiscal, la presidenta y el espía. Em lugar de true crime, o cineasta prefere falar em “narrativa de não ficção sobre temáticas criminais”. E a Netflix, cujo catálogo transborda destes formatos, diz buscar apenas “boas histórias, longe de qualquer pauta”. Mas o fato é que esses documentários se multiplicaram ao mesmo ritmo em que crescia sua audiência. Tanta produção, entretanto, gera dúvidas sobre a qualidade média. E também dilemas: cabe a uma série substituir um juiz? É ético fisgar o público com uma tragédia alheia? Onde fica o limite entre rigor e sensacionalismo?

“Os seres humanos processam os traumas através do nosso sistema nervoso. Se algo fica enquistado, quando você se conecta com aquele momento seu corpo reage como se estivesse sofrendo-o agora. Eu não recomendaria se expor de novo, através de uma série, mas que seja impeditivo ou não depende de como foi o processo de superação”, esclarece Laura Panzano, especialista da clínica de psicologia El Prado, em Madri. Talvez por isso Mindy Pendleton e seu entorno tenham suplicado à Netflix que não fosse adiante com I am a killer, docussérie que narrava, entre outros, o assassinato de seu enteado Robert Mast. A plataforma acabou mantendo o projeto, como relata uma reportagem da Time. O mesmo aconteceu com O desaparecimento de Madeleine McCann, apesar de os pais da menina britânica terem se recusado a colaborar. Ou com a própria Making a murderer, a despeito do comunicado da família de Teresa Halbach: “Ficamos tristes de saber que indivíduos e corporações continuam criando entretenimento e tirando proveito da nossa perda”.

É provável que os excursionistas que desde a exibição da série visitam a fossa onde foram achadas as meninas de Alcàsser não aliviem o trauma dos pais dela. E Andrea Muccioli se arrependeu tanto de participar de Sanpa, a docussérie sobre a polêmica figura de seu pai, Vincenzo, que acaba de processar a Netflix por difamação. “A quem pertence uma história? A quem a viveu ou a quem a conta? Ou ao autor do crime? Isso deveriam dizer os teóricos na universidade. Eu narrei casos com a permissão de vítimas e familiares, e alguns sem, mas com seu consentimento. Outros nós descartamos por não se darem estas condições”, diz Carles Porta, diretor da série radiofônica Crims, agora levada à TV em horário nobre pelo canal regional TV3, que recupera casos que aterrorizaram a Catalunha.

Concentração de jovens na localidade espanhola de Alcàsser, em 28 de janeiro de 1993, um dia depois de os corpos das três meninas serem encontrados.Jordi Vicent

“Acho que sempre é preciso perguntar às vítimas, porque afinal de contas é a história delas. E frequentemente se termina contando o ponto de vista do carrasco”, acrescenta a psicóloga Panzano. Mas a realidade multiplica as opções: Fernando García, pai de uma das meninas de Alcàsser, participou da série de Ramón Campos e Elias Siminiani, enquanto outros familiares se recusaram. A exibição de The Keepers serviu para que mais vítimas de abusos sexuais se atrevessem a denunciá-los. E Kevin Sova se comoveu ao descobrir que a série Unsolved mysteries contava a misteriosa morte de seu irmão Kurt: viu ali a demonstração de que muitos ainda se lembravam dele, segundo a Time.

Crims frequentemente oferece material para essas discussões. Em um capítulo, revelou que Ramón Barranco, depois de cumprir 13 dos seus 30 anos de pena por estuprar e assassinar Maria Carme Castell, fez sua nova vida a poucos quilômetros da família da vítima. O programa mostrava a foto de Barranco enquanto Jeroni Castell relatava seu encontro casual com o estuprador da sua irmã em um bar da região e o acusava de ainda ser “capaz de tudo”. “Está livre? Sim, e dizemos isso. Fez o que fez? Também. Estamos dizendo para irem atrás dele? Isso cada um interpreta. Que Jeroni tenha cruzado com ele perto da sua casa, e ainda por cima se veja obrigado a sair do bar, é dar informação. Não fala de como tratamos as vítimas?”, diz Porta.

Em outro episódio, o dilema foi inclusive parar nos tribunais: com novos indícios, Crims reabriu o caso de Helena Jubany, assassinada em 2001 em Sabadell. Um tribunal de Barcelona, entretanto, acaba de revogar a decisão. “Se os cidadãos se organizaram para encontrar testemunhas é porque a Justiça não o fez. Mas não queremos de forma alguma substituí-la. E o poder da audiência tem coisas boas e más: juízes, policiais ou promotores percebem se houver um interesse forte em resolver um caso. Mas o que ocorre com outros que também merecem ser resolvidos e não têm tanto público?”, acrescenta Porta. Em um artigo de 2016, intitulado O efeito ‘Making a murderer’, Jeremy Gans, especialista em direito criminal da Universidade de Melbourne (Austrália), dizia que estas séries despertaram o espírito crítico da opinião pública, que entende melhor os julgamentos e os olha com lupa: “Os tribunais estão perdendo o monopólio da informação”, escreveu.

Se os cidadãos se organizaram para encontrar testemunhas é porque a Justiça não o fez. Mas não queremos de forma alguma substituí-la.
Carles Porta

Desde que, é claro, a série seja bem feita. Todos concordam que estas obras ―muitos citam como precursor o podcast Serial, de 2014―são o ápice de uma longa evolução narrativa do documentário e impuseram uma maneira rigorosa e atrativa de contar os delitos. “Precisa ser uma grande história. É difícil resumi-la em duas horas. Os protagonistas têm que falar, não os especialistas. E, embora seja possível que se use o crime para vender mais, não se trata de fazê-lo para faturar, depende da maneira como se faz”, argumenta Porta. “Epistemologia com assassinato é melhor do que sem assassinato”, dispara Webster, citando o diretor Errol Morris. E acrescenta: “Uma morte elimina as firulas. Você se centra em querer saber a verdade, com honestidade e respeito”.

É um filtro que nem sempre se cumpre. É verdade que Laura Ricciardi e Moira Demos, diretoras de Making a murderer, passaram 10 anos investigando e gravando. Mas tamanho compromisso é raro. Com tanta fome de true crime, a pressa e a curiosidade mórbida podem acabar sendo tentadoras. “O perigo é cairmos na baixaria. Estão comprando um formato e um tema. Mas o que gerou este sucesso especial e sustentável não é isso. O tema é 5%”, salienta Webster. Este jornal enviou várias perguntas à Netflix sobre estes riscos e seus critérios para produzir séries true crime, mas a resposta se limitou a que “não há padrões específicos”. Porta também se mostra crítico: “Na Espanha há muita pressa, o que se faz são mais reportagens. Os autores estão em segundo plano. Nos EUA, os roteiristas são estrelas; aqui, veem estrelas. A história frequentemente é superficial”. A dor das vítimas, por outro lado, nunca é.

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